Sunday, March 17, 2024

Soneto



Lábios que encontram outros lábios
num meio de caminho, como peregrinos
interrompendo a devoção, nem pobres
nem sábios numa embriaguez sem vinho:

que silêncio os entontece quando
de súbito se tocam e, cegos ainda,
procuram a saída que o olhar esquece
num murmúrio de vagos segredos?

É de tarde, na melancolia turva
dos poentes, ouvindo um tocar de sinos
escorrer sob o azul dos céus quentes,

que essa imagem desce de agosto, ou
setembro, e se enrola sem desgosto
no chão obscuro desse amor que lembro.

Nuno Júdice
1949 - 2024

Saturday, March 16, 2024

16 de Março de 1974

 



Foi há 50 anos...
16 de Março de 1974
A 1ª tentativa do Spínola 'controlar' o Movimento dos Capitães.
Felizmente saiu-lhe o tiro pela culatra 🙂

Tuesday, March 12, 2024

Rádio Portugal Livre

 


Das memórias...
Em 12 de Março de 1962, FAZ HOJE 62 ANOS,
a RÁDIO PORTUGAL LIVRE dava início às suas emissões.
*
UMA VOZ QUE O FASCISMO NUNCA CONSEGUIU CALAR
No início de 1962, inserida na luta de resistência ao fascismo e como reforço à imprensa clandestina, o PCP decidiu criar a Rádio Portugal Livre.
Assim, em 12 Março de 1962 a Rádio Portugal Livre iniciou as suas emissões e durante 12 anos manteve emissões diárias de meia hora, que iam para o ar 4 vezes por dia; aos domingos uma emissão que era dirigida especialmente aos camponeses e aos agricultores; e aos sábados uma emissão ("A Voz das Forças Armadas") dirigida às forças armadas.
Hoje pode-se revelar, sem transgredir regras de segurança que então eram necessárias, que os emissores da RPL estavam instalados na Roménia e que foi a partir de Bucareste (quando se dizia que era de Moscovo ou de Praga) que foi lançada “no ar” de Portugal, desde a primeira até à última emissão.
Durante os 12 anos e meio da sua existência, a pequena redacção da RPL trabalhou em condições de completa "extra-territorialidade", como se estivesse instalada em território português, e com total independência quanto à sua orientação e à organização do seu trabalho.
Durante esses 12 anos e meio, a Rádio Portugal Livre foi a voz livre dos que, cá dentro, não podiam falar livremente. Era uma voz que vinha de longe, é certo, mas que era ouvida bem de perto, com o ouvido colado à onda curta, abafando os sons que pudessem levar à sua detecção na noite ainda a dormir, ou na madrugada por acordar.
Contra essa voz, foi montado um autêntico arsenal técnico de interferências, numa orquestração de ruídos estridentes e confusos, por vezes de um agudo tão metálico que parecia querer furar os tímpanos de quem a escutava. Nessa infame “missão”, à colaboração dos emissores da "Voz da América", localizados no Ribatejo, juntaram-se os serviços de rádio-comunicações das Forças Armadas, numa tentativa desesperada para calar aquela voz que inquietava, que agitava, que acordava consciências...
O contacto permanente com o País, através das notícias enviadas pelo Partido, foi o principal suporte do trabalho diário na RPL. Eram notícias que passavam de mão em mão, por muitas mãos, atravessando muitos perigos e fronteiras, até chegarem às mãos de quem as iria fazer chegar a todo o país. Não teria sido possível alimentar os programas de uma rádio com emissões diárias, sem esse suporte de informações colhidas por todo o país, através da organização do PCP, em fábricas, empresas, escolas, quartéis, cidades, vilas e aldeias.
Em Outubro de 1974, por se considerar que já existiam condições para consolidar a democracia conquistada com o 25 de Abril, a RPL terminou as suas emissões. E a sua última emissão acabou com a seguinte frase: "Esperamos que nunca mais seja necessário haver uma rádio clandestina, para que o povo português saiba o que se passa no seu próprio país".

Isaura Moreira
.
© António Domingues - Rádio Portugal Livre, Gravura

Friday, March 08, 2024

Calçada de Carriche


Luísa sobe, sobe a calçada,
sobe e não pode que vai cansada.
Sobe, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve-lhe o sangue
de afogueada;
saltam-lhe os peitos
na caminhada.
Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Passam magalas,
rapaziada,
palpam-lhe as coxas
não dá por nada.
Anda, Luísa, Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.
Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu-lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu-se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu-a deitada;
serviu-se dela,
não deu por nada.
Anda, Luísa. Luísa, sobe,
sobe que sobe, sobe a calçada.


António Gedeão

Tuesday, March 05, 2024

A Reunião de Cascais 5 de Março de 1974

Há 50 anos, a 5 de março de 1974, o Movimento dos Capitães dava o último passo decisivo no caminho para o 25 de Abril.

Numa reunião em Cascais, onde participam cerca de 200 homens em representação de mais de 600, os Capitães assumem como irreversível a opção pelo golpe de Estado, determinam um reforço da sua organização e acionam os mecanismos para a conclusão de um projeto político que sintetiza os seus objetivos fundamentais.

O encontro clandestino é preparado com relevantes preocupações de segurança. Os jovens militares são inicialmente convocados para 18 cafés ou pastelarias em Lisboa, onde devem esperar por um elemento que os encaminhe para o local da sessão. O plano inicial é realizar a reunião no edifício Franjinhas, no cruzamento das ruas Castilho e Braamcamp, mas é alterado nesse mesmo dia: o destino acaba por ser o 1.º andar do número 45 da rua Visconde Luz, em Cascais, no ateliê do arquiteto Braula Reis.

Nesse pequeno espaço, cumpre-se uma etapa determinante na história do Movimento dos Capitães e para o sucesso da «Operação Viragem Histórica», que, dali por 51 dias, derrubaria uma ditadura que durava há quase meio século.

Durante o encontro, é aprovado pela maioria dos presentes (111) o documento de síntese «O Movimento, as Forças Armadas e a Nação». Este é o primeiro projeto político dos Capitães, fundamental para balizar os seus objetivos, mas também para condicionar quem, derrubada a ditadura, viesse a deter o poder. Fica patente a intenção do Movimento de democratizar o país e de acabar com a guerra e dá-se aqui a passagem do Movimento dos Capitães a Movimento das Força Armadas (MFA). Os Capitães decidem delegar em Melo Antunes a responsabilidade de presidir e coordenar a comissão de elaboração do Programa.

No mesmo encontro realiza-se uma nova votação sobre os futuros chefes do Movimento, num escrutínio mais uma vez ganho por Francisco da Costa Gomes, então Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.

Os presentes dão ainda um voto de confiança à Comissão Coordenadora do Movimento e à direção para desenvolver todas as atividades necessárias à preparação do golpe de Estado.

#50anosdo25deabril

Monday, February 26, 2024

História e Letra de Roda Viva – Chico Buarque

 


Um pouco da História de Roda Viva

Roda Viva foi apresentada ao público, pela primeira vez, no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967. A música ficou com a 3ª colocação na disputa, perdendo apenas para Ponteio (Edu Lobo e Capinam), que foi a primeira colocada, e Domingo no Parque (Gilberto Gil).

Mas a canção faz parte da peça musical homônima de Chico Buarque, que foi encenada pelo Teatro Oficina, com direção de José Celso Martinez Corrêa. No texto, temos a história de um artista que, explorado pela indústria cultural, vive o auge da fama, mas vem a ser descartado depois, e levado à morte no final.

O que inspirou a composição de Roda Viva

Foi dessa forma que Chico resolveu expressar sua insatisfação com a vida no show business que passou a conhecer depois de A Banda, quando virou uma estrela da música, extremamente tietado e fazendo muitos shows Brasil afora. Por isso, ao observarmos um primeiro rascunho da letra, notamos que não há uma conotação política nos versos, e sim a constatação de um artista exausto, que não se sente mais dono do próprio destino, porque chegou a roda-viva, como um redemoinho, tirando tudo da ordem imaginada.

Claro que sem conhecer o que motivou a composição, e sabendo um pouco de história do Brasil, tudo nos leva a pensar que a tal roda-viva é claramente uma alusão ao regime militar. Não é necessariamente, mas pode ser também. Afinal, a letra dá voz a um personagem frustrado, que não pode realizar sua existência livremente, porque uma força contrária causa a desordem, de modo  opressor e arbitrário, logo, ditatorial.

Os ataque contra a peça Roda-Viva

A peça estreou em janeiro de 1968, no Rio de Janeiro. Porém, durante a temporada em São Paulo, membros do CCC (comando de caça aos comunistas), em um ato terrorista, invadiram o teatro, destruíram o cenário, e agrediram todos os artistas e alguns espectadores. Isso voltaria a acontecer em Porto Alegre. Daí então, por segurança, o espetáculo foi cancelado de vez.

Ou seja, depois de sofrer tamanha violência, como não acreditar que a roda-viva não diz respeito à  força bruta, repressora e abusiva, tão característica do regime militar e de seus apoiadores?

O Sucesso de Roda Viva

Num primeiro momento, a ideia de Chico Buarque, ao escrever uma peça rebelde e provocativa, era se desvincular da imagem de bom moço que tinham colado nele. Contudo, no fim das contas, Roda Viva o consagrou ainda mais como artista. E não foi à toa.

Para a apresentação no Festival, Chico pediu a Magro, do grupo MPB-4, que fizesse o arranjo da canção. O resultado foi uma música consagradora. Pois ela ganhou uma bela introdução do grupo vocal, pra depois Chico e o MPB-4 (Magro, Miltinho, Aquiles e Ruy Faria) se revezarem cantando.

E depois de criar um clímax através da repetição do refrão, trazendo a plateia pra cantar junto, a música acabava de repente, abria um breve silêncio para, então, irromper os aplausos. Final apoteótico. Tudo isso sem falar na participação do grupo Som Três, com o piano fundamental de César Camargo Mariano.

Quem gravou Roda Viva

A canção Roda Viva foi gravada, com esse arranjo e o grupo MPB-4, no disco “Chico Buarque de Hollanda – Volume 3”, em 1968, e é praticamente a versão definitiva da música.

Mas outros grandes artistas também fizeram gravações significativas de Roda Viva. Entre tantas outros, destacamos: Quarteto em Cy com Toquinho & Vinícius de Moraes (1974); Ivan Lins (1991); Ney Matogrosso, em um disco somente com canções do Chico (1996); Maria Bethânia (1999); e por Fernanda Porto em uma versão remix (2004) que, na época, tocou bastante no rádio.

Juíza duvidou que Roda Viva é de Chico Buarque

Em 2022 ocorreu um caso bastante curioso. O deputado federal Eduardo Bolsonaro utilizou Roda Viva em um vídeo nas redes sociais. O compositor da música, por sua vez, entrou com um processo na justiça pedindo que a publicação fosse removida pois não havia concedido autorização para uso.

A juíza Monica Ribeiro Teixeira, entretanto, indeferiu o pedido do artista, alegando “ausência de documento indispensável à propositura da demanda, qual seja, documento hábil a comprovar os direitos autorais do requerente sobre a canção Roda Viva.” O advogado do cantor recorreu da decisão.

Informações Gerais

Ano de Lançamento:
1967.

Gênero:
Samba-Canção.

Compositores:
Chico Buarque (1944- )

Gravações Representativas:
Chico Buarque; MPB-4; Quarteto em Cy; Ivan Lins; Ney Matogrosso; Maria Bethânia; Fernanda Porto.


Letra de Roda-Viva.

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu.

A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá.

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir.

Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá.

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou.

A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá.

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração.

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou.

No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá.

Roda mundo, roda gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração


Para Ver e Ouvir:

Versão de Chico Buarque e MPB-4 no III Festival de MPB.

Monday, February 19, 2024

O beijo

 

Greta Zimmer Friedman morreu em 2016, aos 92 anos.
George Mendonsa morreu a 18 de Fevereiro de 2019, com 95 anos.
A foto é da autoria de Alfred Eisenstaedt, foi captada no Times Square, a 14 de agosto de 1945, dia em que o Japão se rendeu oficialmente aos EUA e em que foi declarado o fim da Segunda Guerra Mundial.

Wednesday, February 14, 2024

Os assassínios no PREC


Nélson Teixeira foi o único dos quatro filhos de Rosinda Teixeira que dormiu em casa na madrugada de sexta-feira, 21 de maio de 1976. A família morava no lugar de Arnozela, São Martinho do Campo, localidade no meio do coração das populações dos operários da indústria têxtil.


A bomba explodiu às três horas da manhã e foi tão potente que se ouviu a 50 quilómetros de distância.

Os pais de Nélson foram projetados para fora da cama. O soalho deu de si, a casa ficou toda em chamas. O filho tentou entrar no quarto dos pais. Tentou forçar a porta sem sucesso. “Só me lembro de escutar a minha mãe a dizer ‘ai, Jesus’. Foram as últimas palavras que lhe ouvi.”

O fogo envolvia tudo. Ainda teve forças para abrir a janela e cair desamparado. O corpo do pai tombou também do parapeito da janela, parecendo um homem-tocha. Ficaram ambos a arder entre a erva e as couves. António Teixeira , 49 anos na altura, ficou com queimaduras de terceiro grau. A mãe, Rosinda Teixeira, morreu nas chamas.

Os explosivos plásticos tinham sido postos por baixo do quarto do casal. Um engenho idêntico ao que tinha deflagrado, uma semana antes, na Embaixada de Cuba em Lisboa, matando duas pessoas.

O homem que tinha perpetrado o atentado em São Martinho do Campo, um dos muitos que cometeu, era Ramiro Moreira, antigo segurança do PPD (atual PSD), e em algumas dessas ações acompanhara-o Manuel Macedo, dirigente do MDLP. Moreira foi militante n.º 7 do PPD e responsável da segurança; foi expulso por Sá Carneiro, em novembro de 1975, por pertencer ao MDLP.

O atentado de São Martinho do Campo fora “encomendado” a essa organização por um industrial da zona. O alvo era o operário têxtil e pai de Nélson.

“António Teixeira, marido de Rosinda, a vítima mortal na noite fatídica de maio de 1976, começara a trabalhar para ele [esse empresário] em 1949 e notara a grosseria dos modos, os maus-tratos aos empregados, o assédio sexual às operárias. ‘Ele chamava ao gabinete as que lhe interessavam, mas muitas não lhe davam hipótese. Chegava a agredi-las à chapada na frente de toda a gente’, ilustra Nélson Teixeira [filho da mulher assassinada], a partir de histórias escutadas ao pai e a outros empregados. O descaro incluía mulheres grávidas e casadas, ouvir-se-ia mais tarde em tribunal”, relata Miguel Carvalho no seu livro Quando o Portugal Ardeu, em que se investigam os crimes da rede bombista de extrema-direita responsável por muitos assassínios durante o PREC.

“Os vários ‘exércitos’ da contrarrevolução, alguns avulsos, foram responsáveis por 566 ações violentas no país entre maio de 1975 e abril de 1977, uma média de 24 atos de terrorismo por mês, quase um por dia, causando mais de 10 mortes e prejuízos incalculáveis no património de vítimas e instituições. Os partidos de esquerda, como o PS, com o PCP à cabeça, foram os alvos preferenciais de quase 80% das bombas incendiárias, espancamentos, apedrejamentos e atentados a tiro”, contabiliza Miguel Carvalho no seu livro.

Uma das estruturas responsável por esta dezena de assassínios e quase 600 ações terroristas nos anos depois da revolução foi o MDLP, a que pertenceu o antigo deputado do Chega Diogo Pacheco de Amorim. A organização foi condenada em tribunal pelo assassínio do padre Max e da estudante Maria de Lurdes.

Quando, no debate entre os líderes do PCP e do Chega, André Ventura resolve acusar o PCP de inúmeros assassínios no PREC, está visivelmente a tentar desviar a atenção das acusações de Paulo Raimundo, bastante mais verdadeiras, do seu apoio às medidas contra reformados e trabalhadores durante os governos de Passos Coelho.
Ventura não ficou por aqui, finalizando a sua intervenção a dizer que todas as situações em que o PCP esteve no poder “acabaram em morte, em roubo e destruição”.

A verdade é que, no caso dos anos posteriores à Revolução de Abril de 1974, pode André Ventura procurar os cúmplices destes atos dentro do seu próprio partido.
O MDLP estava ao serviço de certos empresários para castigar operários e até pôr bombas, como em São Martinho do Campo. O Chega é mais prosaico, recebe dinheiro de um conjunto largo de grandes patrões, mas é mais para confundir as coisas e fazer uma muralha de fumo, em que a pequena corrupção permita escapar a grande corrupção não criminalizada dos interesses instalados em Portugal.

Durante os governos da troika que André Ventura apoiou, um conjunto de empresas estratégicas foi alienado por meia dúzia de patacos. Em poucos anos, a REN, EDP e ANA deram dividendos milionários, que permitiram pagar o dinheiro que custaram aos grupos empresariais que as compraram. Várias inspeções do Tribunal de Contas concluíram que o Estado e os contribuintes foram privados de uma enorme riqueza. Tudo isto foi feito com o silêncio, na altura, do atual líder do Chega.

Como é também verdade que ficou mudo perante os cortes às remunerações dos reformados, polícias, professores e trabalhadores nos anos do governo de Passos Coelho.

É isso que ele não soube explicar durante o debate com Paulo Raimundo e que o levou a reescrever a história dos anos que se seguiram à revolução, inventando coisas.

Ventura sabe que a mentira, por mais que seja mentira, é mais difícil de corrigir do que de propagar. Aprendeu isso com Bolsonaro e com a extrema-direita de outros países.

Nuno Ramos de Almeida, DN 11.2.2024

Tuesday, February 13, 2024

NOITE DOS MASCARADOS


- Quem é você?
- Adivinha, se gosta de mim!

Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:

- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo.

- Eu sou seresteiro,
Poeta e cantor.
- O meu tempo inteiro
Só zombo do amor.
- Eu tenho um pandeiro.
- Só quero um violão.
- Eu nado em dinheiro.
- Não tenho um tostão.
Fui porta-estandarte,
Não sei mais dançar.
- Eu, modéstia à parte,
Nasci pra sambar.
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!

Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.

Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!


- Quem é você?
- Adivinha, se gosta de mim!

Hoje os dois mascarados
Procuram os seus namorados
Perguntando assim:

- Quem é você, diga logo...
- Que eu quero saber o seu jogo...
- Que eu quero morrer no seu bloco...
- Que eu quero me arder no seu fogo.

- Eu sou seresteiro,
Poeta e cantor.
- O meu tempo inteiro
Só zombo do amor.
- Eu tenho um pandeiro.
- Só quero um violão.
- Eu nado em dinheiro.
- Não tenho um tostão.
Fui porta-estandarte,
Não sei mais dançar.
- Eu, modéstia à parte,
Nasci pra sambar.
- Eu sou tão menina...
- Meu tempo passou...
- Eu sou Colombina!
- Eu sou Pierrô!

Mas é Carnaval!
Não me diga mais quem é você!
Amanhã tudo volta ao normal.
Deixa a festa acabar,
Deixa o barco correr.

Deixa o dia raiar, que hoje eu sou
Da maneira que você me quer.
O que você pedir eu lhe dou,
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!
Seja você quem for,
Seja o que Deus quiser!


Chico Buarque

Sunday, February 11, 2024

Lego


 Entregue a quem gosta...

Thursday, February 08, 2024

Uma mulher de carne azul


(De "Eléctrico" num carro para Campolide. Dia sexual)
Um mulher de carne azul,
semeadora de luas e de transes,
atravessou o vidro
e veio, voadora,
Sentar-se no meu colo
na nudez reclinada
dum desdém de espelhos.
(Mas que bom! Ninguém suspeita
que levo uma mulher nua nos joelhos.)
José Gomes Ferreira

Saturday, February 03, 2024

Nasci para te amar

 
Nasci para te amar. Sempre.
Para te beber gota a gota. Nas noites.
Para te abraçar assim. Nos dias.
Nasci para morrer contigo. Hoje.
Esmago-me no beijo da tua boca. Aberta.
Estremeço-me e contigo morro. Agora.
Nasceremos outra vez. Sempre…

Sunday, January 21, 2024

Lenine

 


"Tínhamos chegado perto do Cinema Gato Preto. De qualquer parte, de súbito, abriram-se as portas de um pátio, umas portas de madeira, altas, imensas. Era perto de nós, ou na nossa frente, ou do outro lado, lá em baixo, não sei. Dessas portas saíram camiões, homens. E ouvi um grito. Eram de certeza várias pessoas que tinham gritado ao mesmo tempo, mas eu julguei ouvir um único grito. Um único ser gritou, mais forte que a rua imensa, iluminada, animada, mais forte que a noite e o frio: Lénine morreu!
O que se passou depois? Vi os acontecimentos aos pedaços, e não cronologicamente, todos ao mesmo tempo. O que ouvi também. Arrancavam-se os jornais das mãos daqueles que tinham saído das portas de madeira. Um eléctrico parou diante de mim. Ficou vazio num instante. Todos os eléctricos pararam. Todos vazios. Não ouço nada. Um velho chora, tira o gorro, aperta-o contra o coração. É calvo. Chora. Os trenós pararam. Os trenós estão vazios. Os cinemas esvaziam-se, a multidão parece fugir a um incêndio. E os restaurantes e as casas. Tudo se lança para a rua. A Avenida Tverskoi cobriu-se de gente, as pessoas juntam-se, empurram-se em redor dos vendedores de jornais. Sentado no estribo de um eléctrico, um guarda-freio chora. A rapariga de faces vermelhas que encontrámos há pouco chora. Kerime chora com um jornal na mão, mas eu nada ouço, tudo o que vejo parece desenrolar-se num imenso aquário. Alguém caiu. Outro. As pessoas lançam-se nos braços umas das outras, chorando, vejo-as, mas não ouço qualquer som. Alguém me puxa pelo braço.
Volto-me, é uma velha enrugada, baixinha, vestida de uma peliça, com a cabeça envolta num xaile. Puxa-me pelo braço, diz-me qualquer coisa com a sua boca sem dentes, não percebo. Inclino-me para ela. Pergunta-me com a voz de uma criança de seis anos, com o medo de uma criança de seis anos: “Lénine morreu?” Aceno que sim com a cabeça. “Morreu…” Julgo que vai benzer-se, mas não, largou o meu braço: “Que desgraça para nós…” Repete: “Que desgraça…” Que desgraça! Que desgraça! A voz torna-se mais forte, alarga, alarga, cresce como o génio dos contos que surge da garrafa mágica, depois perde-se subitamente, e então não ouço. No dia do enterro do meu avô ouvi soluçar dez, talvez vinte pessoas ao mesmo tempo; pode-se imaginar cem pessoas soluçando no mesmo instante, mas uma cidade inteira a chorar numa única voz, esse ruído não se pode ouvir mais que alguns minutos. Ou talvez não se ouça, mas o instinto leva-nos a não o ouvir mais para salvar os nossos nervos e a nossa razão, para não enlouquecermos, e não é já essa voz que ouvimos, mas soluços aqui e além.(…)
Levaram Lénine para Kollomi Zal. Dos quatro cantos do país, os comboios trazem pessoas a Moscovo, todos os que querem ver Lénine pela última vez. (…) Nas ruas, nas praças, noite e dia ardem fogueiras gigantescas. Noite e dia, as filas de homens avançam para a Kolloni Zal. As ambulâncias transportam ao hospital os doentes e os enregelados. (…) É Krupskaia quem eu vejo primeiro. Está de pé diante dos montões de flores, os seus cabelos grisalhos, lisos, separados por uma risca, o vestido caindo a direito. Os braços ao lado do corpo. Os seus olhos salientes muito abertos, estão fixados num ponto. Olhei para onde ela olhava, vi Lénine. A sua testa, a sua testa amarela, incrivelmente larga: curva como o universo. Lénine estava deitado de costas, as mãos cruzadas no peito. Vi-lhe a condecoração da bandeira Vermelha.”
Nazim Hikmet, poeta comunista turco.
Foi num 21 de Janeiro. Foi há 100 anos.

A BRUXA


As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas trituradas
pelo próprio veneno das entranhas.

As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas  tal como as aranhas.

Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.

Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espalhadas pela pele
e é filha de si própria. É uma bruxa.

Ary dos Santos