Thursday, December 24, 2015

Quando um Homem quiser



Tu que dormes à noite na calçada do relento
numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
és meu irmão, amigo, és meu irmão

E tu que dormes só o pesadelo do ciúme
numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
e sofres o Natal da solidão sem um queixume
és meu irmão, amigo, és meu irmão

Natal é em Dezembro
mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
é quando um homem quiser
Natal é quando nasce
uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto
que há no ventre da mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
tu que inventas bonecas e comboios de luar
e mentes ao teu filho por não os poderes comprar
és meu irmão, amigo, és meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
és meu irmão, amigo, és meu irmão.

Ary dos Santos

Thursday, December 10, 2015

SPARTACUS




Em cada hora
Em cada dia
Século após século
os homens arremessam o teu nome ao vento
e dele saem dardos, punhais, espadas
e dele saem pombas e flores ensanguentadas
De cada letra um filho
De cada som um eco
Teu nome-profecia
Teu nome vinho-novo
que ao terceiro dia há-de ressuscitar
nas veias do meu povo
Teu nome
que mil vezes tem sido agrilhoado
Teu nome sangue-mel
nos lábios do carrasco uma esponja de fel
Teu nome-escravo
Teu nome-espectro
fantasma de terror na noite de algozes
temido como as vozes que clamam no deserto
Teu nome-salmo
escrito em cada corpo morto
em cada cruz erguida
Teu nome-espiga
que se transforma em pão
Teu nome-pedra
da construção do mundo
que será o fruto do teu gesto
Teu nome
em cada gesto do esvoaçar das asas
da gaivota presa
Teu nome
vela-acesa na catedral da esperança
do altar-homem
Teu nome
em cada grito
em cada mão
Teu nome-sinfonia
que há-de explodir com a alegria
de um átomo liberto
Spartacus!
Teu nome-irmão.
Maria Eugénia Cunhal

Tuesday, November 24, 2015

Tempo

(foto da net)

Em tempo de saudade, ou de saudades, lembrei-me da nespereira da minha avó. Mesmo no centro da minha cidade. Num quintal. E lá trepávamos nós até ao cimo para apanhar nêsperas, quando chegava o tempo. De um tempo que já não chega, porque o tempo não volta.

Thursday, November 05, 2015

Refeição



Estendemos a toalha
Trouxeste o pão, o vinho
Eu trouxe a fome, a sede o cansaço
E a mão para colher
A pureza espontânea do teu gesto
Que tem a dimensão do teu braço
Eu recebi
Tu deste
Compartilhámos.
Da refeição ficou o travo doce e bom do mel
E a certeza daquilo que está certo.

Maria Eugénia Cunhal


Tuesday, October 20, 2015

*


Ainda abro a porta todos os dias, logo de manhã, num gesto 'mecanizado'.
E pergunto-me porque o faço, se tu já não vens...

Friday, October 16, 2015

Memória da voz da ternura


Soneto a Adriano

Não era só a voz o som a oitava
que ele queria sempre mais acima
nem sequer a palavra que nos dava
restituída ao tom de cada rima.


Era a tristeza dentro da alegria
era um fundo de festa na amargura
e a quase insuportável nostalgia
que trazia por dentro da ternura.


O corpo grande e a alma de menino
trazia no olhar aquele assombro
de quem quer caber e não cabia.


Os pés fora do berço e do destino
alguém o viu partir de viola ao ombro.
Era Outubro em Avintes. E chovia.


Manuel Alegre

Monday, October 12, 2015

Wednesday, October 07, 2015

Do cizento dos dias


Hoje não me apetece escrever. Tenho nada para contar ou dizer e tenho cansaço que sobra. Caiu um cinzento em mim que me tolhe o pensamento e os dedos. Por isso as palavras não saem. Um cinzento estranho quase chumbo que há muito não sentia. É por isso que hoje não me apetece escrever. E no entanto preciso tanto de te falar de deixar sair pela boca as palavras que não queres ouvir as palavras que já deviam ter sido ditas no tempo certo. Mas também não sei quando é o tempo certo para te falar porque tu és hábil a fugir a assuntos ou temas que não te agradam. Daí o meu cansaço que sobra. E por isso hoje não me apetece escrever.

Wednesday, September 30, 2015

Brecht, a ler e reler, sempre!


O Analfabeto Político

O pior analfabeto é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe,
da farinha, da renda de casa, dos sapatos, dos remédios,
dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e
enche o peito de ar dizendo que odeia a política.
Não sabe, o idiota,
que da sua ignorância política
nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos
que é o político vigarista, aldrabão,
o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.


(Bertold Brecht)

Sunday, September 27, 2015

Memories...





Meu menino

Se um dia você for embora
Não pense em mim
Que eu não te quero meu
Eu te quero seu
Se um dia você for embora
Vá lentamente como a noite
Que amanhece sem que
A gente saiba
Exactamente
Como aconteceu
Se um dia você for embora
Ria se teu coração pedir
Chore se teu coração mandar
Mas não me esconda nada
Que nada se esconde
Se por acaso um dia você for embora
Leve o menino que você é.

Wednesday, September 23, 2015

Saudade


Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

Pablo Neruda


Monday, September 14, 2015

Para desanuviar...




E X P O S I Ç Ã O

Porque julgamos digna de registo
a nossa exposição, senhor Ministro,
erguemos até vós, humildemente,
uma toada uníssona e plangente
em que evitámos o menor deslize
e em que damos razão da nossa crise.

Senhor: Em vão, esta província inteira,
desmoita, lavra, atalha a sementeira,
suando até à fralda da camisa.
Falta a matéria orgânica precisa
na terra, que é delgada e sempre fraca!
- A matéria, em questão, chama-se caca.

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

Se os membros desse ilustre ministério
querem tomar o nosso caso a sério,
se é nobre o sentimento que os anima,
mandem cagar-nos toda a gente em cima
dos maninhos torrões de cada herdade.
E mijem-nos, também, por caridade!

O senhor Oliveira Salazar
quando tiver vontade de cagar
venha até nós solícito, calado,
busque um terreno que estiver lavrado,
deite as calças abaixo com sossego,
ajeite o cú bem apontado ao rego,
e... como Presidente do Conselho,
queira espremer-se até ficar vermelho!

A Nação confiou-lhe os seus destinos?...
Então, comprima, aperte os intestinos;
se lhe escapar um traque, não se importe,
quem sabe se o cheirá-lo nos dá sorte?
Quantos porão as suas esperanças
n'um traque do Ministro das Finanças?...
E quem vier aflito, sem recursos,
Já não distingue os traques dos discursos.

Não precisa falar! Tenha a certeza
que a nossa maior fonte de riqueza,
desde as grandes herdades às courelas,
provém da merda que juntarmos n'elas.

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

Adubos de potassa?... Cal?... Azote?...
Tragam-nos merda pura, do bispote!
E todos os penicos portugueses
durante, pelo menos uns seis meses,
sobre o montado, sobre a terra campa,
continuamente nos despejem trampa!

Terras alentejanas, terras nuas;
desespero de arados e charruas,
quem as compra ou arrenda ou quem as herda
sente a paixão nostálgica da merda...

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

Ah!... Merda grossa e fina! Merda boa
das inúteis retretes de Lisboa!...
Como é triste saber que todos vós
Andais cagando sem pensar em nós!

Se querem fomentar a agricultura
mandem vir muita gente com soltura.
Nós daremos o trigo em larga escala,
pois até nos faz conta a merda rala.

Venham todas as merdas à vontade,
não faremos questão da qualidade.
Formas normais ou formas esquisitas!
E, desde o cagalhão às caganitas,
desde a pequena poia à grande bosta,
de tudo o que vier, a gente gosta.

Precisamos de merda, senhor Soisa!...
E nunca precisámos de outra coisa.

João Vasconcelos e Sá

Friday, September 11, 2015

Há 42 anos, no Chile...




"Trabajadores de mi Patria, tengo fe en Chile y su destino. Superarán otros hombres este momento gris y amargo en el que la traición pretende imponerse. Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor.

¡Viva Chile! ¡Viva el pueblo! ¡Vivan los trabajadores!

Estas son mis últimas palabras y tengo la certeza de que mi sacrificio no será en vano, tengo la certeza de que, por lo menos, será una lección moral que castigará la felonía, la cobardía y la traición."

(Excerto do último discurso de Salvador Allende, assassinado no assalto ao Palácio de La Moneda)

Tuesday, September 08, 2015

Dos mares...



Sabes que te leio sempre
embora às vezes não deixe rasto
é que as palavras diluem-se na água
que me escorre dos olhos
tantas vezes...

Sunday, August 30, 2015

A FESTA!




É já na próxima sexta feira!

Tuesday, August 25, 2015

Pequeno poema


Mother and Child (detalhe da pintura, Three Ages of Woman - Gustav Klimt)



Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...


(Sebastião da Gama)

Saturday, August 15, 2015

Para ti...



"Gostava de encontrar um cavalo que me levasse até dentro de um conto de fadas. Só um bocadinho... para sentir o perfume e o calor das suas cores.. para respirar o ar dos sonhos; dos tempos... para me deixar contemplativamente às voltas de todas as suas personagens... sem ser visto... só para ver e cheirar... caminhar por entre todos os enredos... nunca ter medo do medo porque sei o que vai acontecer... apenas para ficar... por um momento só. Para depois ao voltar poder dizer que consegui!"

Pedro Branco

Thursday, August 13, 2015

A Fidel Castro



Fidel, Fidel, los pueblos te agradecen
palabras en acción y hechos que cantan,
por eso desde lejos te he traído
una copa del vino de mi patria:
es la sangre de un pueblo subterráneo
que llega de la sombra a tu garganta,
son mineros que viven hace siglos
sacando fuego de la tierra helada.
Van debajo del mar por los carbones
Y cuando vuelven son como fantasmas:
se acostumbraron a la noche eterna,
les robaron la luz de la jornada
y sin embargo aquí tienes la copa
de tantos sufrimientos y distancias:
la alegría del hombre encarcelado,
poblado por tinieblas y esperanzas
que adentro de la mina sabe cuándo
llegó la primavera y su fragancia
porque sabe que el hombre está luchando
hasta alcanzar la claridad más ancha.
Y a Cuba ven los mineros australes,
los hijos solitarios de la pampa,
los pastores del frío en Patagonia,
los padres del estaño y de la plata,
los que casándose con la cordillera
sacan el cobre de Chuquicamata,
los hombres de autobuses escondidos
en poblaciones puras de nostalgia,
las mujeres de campos y talleres,
los niños que lloraron sus infancias:
ésta es la copa, tómala, Fidel.
Está llena de tantas esperanzas
que al beberla sabrás que tu victoria
es como el viejo vino de mi patria:
no lo hace un hombre sino muchos hombres
y no una uva sino muchas plantas:
no es una gota sino muchos ríos:
no un capitán sino muchas batallas.
Y están contigo porque representas
todo el honor de nuestra lucha larga
y si cayera Cuba caeríamos,
y vendríamos para levantarla,
y si florece con todas sus flores
florecerá con nuestra propia savia.
Y si se atreven a tocar la frente
de Cuba por tus manos libertada
encontrarán los puños de los pueblos,
sacaremos las armas enterradas:
la sangre y el orgullo acudirán
a defender a Cuba bienamada.


Pablo Neruda
Canción de gesta, 1960

Sunday, August 09, 2015

Para que nunca mais!


UM PÁSSARO NA PALAVRA

E ali estava no céu há duzentos anos
e toda a gente dizia para sempre que
cantava com uma voz divinamente mística
uma grande águia desdobrando as asas
aos ventos do mundo
e aos povos
oh como vêm
em barcos e aviões
e como montaram o grande pássaro
e como ele os levou de passeio
e voou milhares
e milhares de milhar
e como gostava de levar gente de passeio
faziam tocas no grande costado
e fossos nas asas
e cavavam nos grandes genitais
e extraíam-lhe os sucos a taxa reduzida
e treinavam e ajaezavam
este pássaro divinamente místico
e ele foi enfraquecendo
e envelhecendo
e os cabelos brancos
caíram da sua cabeça encanecida
e chamaram-lhe
a águia careca
e pôs um ovo em hiroshima
e outro em nagasaki
e perdeu a voz
e as penas caíram-lhe sobre cuba
e a república dominicana e o mississipi
e as asas caíram-lhe sobre o vietnam
e fizeram penas sintéticas para tapar as faltas
e ninguém acreditou no seu canto
nem mesmo as joaninhas
e ao cair tornou-se um falcão
e começou gente a cair
sufocada pelo fedor de um sonho moribundo
e tornou-se um canário
cantando versos de cor
a um mundo comprado dentro de um mundo
e o dia tornou-se noite
e o atrás tornou-se frente
e o preto tornou-se branco
e as folhas de erva viraram-se e gemeram
e as árvores gemeram
e o ar uiva e guincha
o seu lamento contra a América.

Robert Saggese
(in antologia da novíssima poesia norte-americana)

Thursday, August 06, 2015

Para que nunca mais!!!!


Não há outro post possível. Hoje!


Rosa de Hiroshima

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas

Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária

A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada


(Vinicius de Moraes)
(foto da net)

Sunday, August 02, 2015

*


Deixa-me habitar em ti!

Sunday, July 26, 2015

Quero um cavalo de várias cores



Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores? 


Reinaldo Ferreira

Sunday, July 19, 2015

*


Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia
Que partout, everywhere, em toda a parte,
A vida égale, idêntica, the same,
É sempre um esforço inútil,
Um voo cego a nada.
Mas dancemos; dancemos
Já que temos
A valsa começada
E o Nada
Deve acabar-se também,
Como todas as coisas.
Tu pensas
Nas vantagens imensas
De um par
Que paga sem falar;
Eu, nauseado e grogue,
Eu penso, vê lá bem,
Em Arles e na orelha de Van Gogh...
E assim entre o que eu penso e o que tu sentes
A ponte que nos une - é estar ausentes.
 

Reinaldo Ferreira

Thursday, July 09, 2015

Sem título


As pedras e os cristais ganham a força das palavras
nos pássaros que espantam os teus olhos...

Monday, July 06, 2015

Não olhes o meu sorriso



Não olhes o meu sorriso assim
Não procures a memória e esse cheiro
Vezes sem conta que chove em mim
O desencontro de um nascer derradeiro
Não me olhes, não!
Que carrego todo o mar que dentro existe
Perdido na corrente e quem sabe na ilusão
De saber-me o tanto que é ser-se triste
O tanto que é ser amor e dor
O tanto que se encostou num fim.
Não olhes o meu sorriso assim...

Por favor.


Pedro Branco

Sunday, June 28, 2015

Há um ano foi assim...



NÃO SEI DE MIM

Sei do teu olhar menino profundo flor coração
 

do abraço quente apertado fogo paixão
do vento do tempo do rio do norte do mar
sei de ti a vontade de tanto caminhar
dos poemas vagabundos dos versos e cantigas
mas não sei de mim nem das noites perdidas

Sei do vermelho do desejo da flor em botão

do beijo da pele toque ardente solidão
dos passos percorridos dos passos por andar
sei da cidade a adormecer e de ti a vaguear
das palavras que nos unem e de tanto sofrer
mas não sei de mim nem do poema por nascer.

Monday, June 22, 2015

Do outro lado o mar




Do outro lado o mar. Aqui a serra mãe de onde nasces fio de água rio transparente depois. Uma vida inteira para serpenteares ao longo dos montes até chegares à foz. Do outro lado o mar. Aqui o verde primavera e todas as flores selvagens que amas. As árvores que te dão sombra e onde descansas de todos os cansaços. Do outro lado o mar. Acompanho o caminho que tentas encontrar por entre pedras e tojos. Não sossegas enquanto não fazes as tuas margens, onde me sento. Do outro lado o mar. Quanto mais corres mais cresces como se o ar que respiras te alimentasse e fazes o teu leito. Onde acontece vida. Onde sacio a minha sede. Onde amo. Do outro lado o mar. Onde.

Thursday, June 18, 2015

Memória de Saramago



Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.


Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.


Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.


José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"

Saturday, June 13, 2015

Memória de Álvaro Cunhal




A última vontade

É minha vontade ser incinerado no forno crematório e que as cinzas sejam espalhadas na terra ou canteiros de flores do cemitério.
É também minha vontade, que peço ao meu Partido que respeite, que no funeral não sejam pronunciados quaisquer discursos.
É-me também particularmente grata a ideia de que poderão querer (seja-lhes ou não possível fazê-lo) despedir-se de mim nesse dia, designadamente:
- camaradas meus, dos mais responsáveis aos mais modestos e desconhecidos, junto com os quais, antes e depois do 25 de Abril, lutei até aos últimos dias de vida (sempre com confiança no futuro) pelos interesses e direitos dos trabalhadores, por uma sociedade de liberdade e democracia, pelo bem do nosso povo e da nossa pátria, pelo nosso partido como partido da classe operária, dos trabalhadores, de todos os explorados e ofendidos, por uma sociedade socialista;
- também familiares a quem muito quero, antes de mais a filha querida e seus filhos, a irmã, a companheira mulher amada e outros familiares próximos, aos quais, mesmo quando longe, me ligaram, e ligam, até aos últimos momentos de vida, os mais profundos e ímpares sentimentos de amor e ternura;
- e ainda amigos sem partido, e homens, mulheres e jovens que me habituei a estimar e a respeitar, e a muitos dos quais me ligaram profundas relações de amizade e compreensão;
- outros que queiram estar presentes, com respeito pelo que como comunista fui toda a vida, com virtudes e defeitos, méritos e deméritos como todo o ser humano.


A todos desejo que, vida fora, realizem os seus sonhos.

Álvaro Cunhal

Memória de Álvaro Cunhal



La Lámpara Marina

I
El Puerto Color de cielo


Cuando tú desembarcas
en Lisboa,
cielo celeste y rosa rosa,
estuco blanco y oro,
pétalos de ladrillo,
las casas,
las puertas,
los techos,
las ventanas,
salpicadas del oro limonero,
del azul ultramar de los navíos.

Cuando tú desembarcas
no conoces,
no sabes que detrás de las ventanas
escuchan,
rondan
carceleros de luto,
retóricos, correctos,
arreando presos a las islas,
condenando al silencio,
pululando
como escuadras de sombras
bajo ventanas verdes,
entre montes azules,
la policía
bajo las otoñales cornucopias
buscando portugueses,
rascando el suelo,
destinando los hombres a la sombra.

II
La Cítara Olvidada

Oh Portugal hermoso
cesta de fruta y flores,
emerges
en la orilla plateada del océano,
en la espuma de Europa,
con la cítara de oro
que te dejó Camoens,
cantando con dulzura,
esparciendo en las bocas del Atlántico
tu tempestuoso olor de vinerías,
de azahares marinos,
tu luminosa luna entrecortada
por nubes y tormentas.

III
Los presidios

Pero,
portugués de la calle,
entre nosotros,
nadie nos escucha,
sabes
dónde
está Álvaro Cunhal?
Reconoces la ausencia
del valiente
Militão?
Muchacha portuguesa,
pasas como bailando
por las calles
rosadas de Lisboa,
pero,
sabes dónde cayó Bento Gonçalves,
el portugués más puro,
el honor de tu mar e de tu arena?
Sabes
que existe
una isla,
la isla de la Sal,
y Tarrafal en ella
vierte sombra?
Sí, lo sabes, muchacha,
muchacho, sí, lo sabes.
En silencio
la palabra
anda con lentitud pero recorre
no sólo el Portugal, sino la tierra.
Sí, sabemos,
en remotos países,
que hace treinta años
una lápida
espesa como tumba o como túnica
de clerical murciélago,
ahoga, Portugal, tu triste trino,
salpica tu dulzura
con gotas de martirio
y mantiene sus cúpulas de sombra.

IV
El Mar Y Los Jazmines

De tu mano pequeña en otra hora
salieron criaturas
desgranadas
en el asombro de la geografia.
Así volvió Camoens
a dejarte una rama de jazmines
que siguió floreciendo.
La inteligencia ardió como una viña
de transparentes uvas
en tu raza.

Guerra Junqueiro entre las olas
dejó caer su trueno
de libertad bravía
que transportó el océano en su canto,
y otros multiplicaron
tu esplendor de rosales y racimos
como si de tu territorio estrecho
salieran grandes manos
derramando semillas
para toda la tierra.

Sin embargo,
el tiempo te ha enterrado.
El polvo clerical
acumulado en Coimbra
cayó en tu rostro
de naranja oceánica
y cubrió el esplendor de tu cintura.

V
La Lámpara Marina

Portugal,
vuelve al mar, a tus navíos,
Portugal, vuelve al hombre, al marinero,
vuelve a la tierra tuya, a tu fragancia,
a tu razón libre en el viento,
de nuevo
a la luz matutina
del clavel y la espuma.
Muéstranos tu tesoro,
tus hombres, tus mujeres.
No escondas más tu rostro
de embarcación valiente
puesta en las avanzadas de Océano.
Portugal, navegante,
descubridor de islas,
inventor de pimientas,
descubre el nuevo hombre,
las islas asombradas,
descubre el archipélago en el tiempo.

La súbita
aparición
del pan
sobre la mesa,
la aurora,
tú, descúbrela,
descubridor de auroras.
Cómo es esto?
Cómo puedes negarte
al ciclo de la luz tú que mostraste
caminos a los ciegos?

Tú, dulce y férreo y viejo,
angosto y ancho padre
del horizonte, cómo
puedes cerrar la puerta
a los nuevos racimos
y al viento con estrellas del Oriente?

Proa de Europa, busca
en la corriente
las olas ancestrales,
la marítima barba
de Camoens.
Rompe
las telaranãs
que cubren tu fragrante arboladura,
y entonces
a nosotros los hijos de tus hijos
aquellos para quienes
descubriste la arena
hasta entonces oscura
de la geografía deslumbrante,
muéstranos que tú puedes
atravesar de nuevo
el nuevo mar oscuro
y descubrir al hombre que ha nacido
en las islas más grandes de la tierra.

Navega, Portugal, la hora
llégó, levanta
tu estatura de proa
y entre las islas y los hombres vuelve
a ser camino.
En esta edad agrega
tu luz, vuelve a ser lámpara:
aprenderás de nuevo a ser estrella.

Pablo Neruda
(para Álvaro Cunhal)

Tuesday, June 02, 2015

NUDEZ





Dispo-te. Despes-me. Despidos,
vestimo-nos de amor.

(inédito)
Joaquim Pessoa

Saturday, April 25, 2015

Sunday, April 19, 2015

Noite


É de noite que renasço cada dia. É de noite que as palavras me escorrem pelos dedos como se fossem água de um rio caudaloso que corre desenfreado até à foz. Das palavras.
É de noite que me refaço ao pôr da lua. E é de noite que a poesia se solta do meu peito como se fosse um grito que ninguém ouve porque se juntou ao rio e já desaguou no mar.
É de noite que os amores secretos se encontram. Ainda que distantes. Ainda que apenas em pensamento. É de noite que escrevo porque as palavras me regressam em cada maré. E porque gosto deste silêncio...

Monday, April 13, 2015

Eduardo Galeano




"A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar."

Thursday, April 09, 2015

Poema dedicado a Adriano Correia de Oliveira




MEU CAMARADA E AMIGO

Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigo

As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.
É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.
Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.
Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
— mas um poeta só fala
por sofrimento total!
Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Aonde me não revejo
é que eu sofro o meu país.

Ary dos Santos

Sunday, April 05, 2015

Acetinada



Rompo esta saudade a cantar
No vai e vem de todas as marés
Na pele no olhar no verbo amar
E na espuma das ondas a beijar-te os pés

Sei do cheiro que me trespassa
E da cor da rocha feita leito
Em cada gaivota que aqui passa
Vai um pouco de nós, de qualquer jeito

Aqui respiro aqui amo e fico enfim
Nas memórias da minha inquietação
E a presença do amor pele de cetim
Guardo fechada, para sempre, no coração.

Para o Gustavo Carvalho
que partiu sem avisar...

Saturday, March 28, 2015

Tuesday, March 24, 2015

O Amor em Visita


Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas -
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele - imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.

Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.
- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.
Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada
beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura, não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.


Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz
sobre as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te aprendessem minhas mãos, forma do vento
a cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros
do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho,
no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

Herberto Helder, in 'O Amor em Visita'

Saturday, March 21, 2015

A defesa do poeta


Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além
Senhores três quatro cinco e Sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer!
  
Natália Correia


Monday, March 16, 2015

Coro dos Cornudos





04/12/10

http://cadernosemcapa.blogspot.pt/2010/12/como-recordacao-dum-convivio-memoravel.html


Poema de Luiz Pacheco (1925-2008)

Como recordação dum convívio memorável, aqui fica publicado, na íntegra, o longo poema de Luiz Pacheco, com o título CÔRO DE ESCARNHO E LAMENTAÇÃO DOS CORNUDOS EM VOLTA DE S. PEDRO, publicado pelas edições Afrodite na obra «Textos Malditos».
Fica também um abraço ao amigo que o disse quase todo de memória e aos que comigo partilharam o prazer de ouvir.

MONÓLOGO DO 1.º CORNUDO
I
Acordei um triste dia
Com uns cornos bem bonitos.
E perguntei à Maria
Por que me pôs os palitos.
II
Jurou por alma da mãe
Com mil tretas de mulher
Que era mentira. Também
Inda me custava a crer...
III
Fiquei de olho espevitado
Que o calado é o melhor
E para não re-ser enganado,
Redobrei gozos de amor.
IV
Tais canseiras dei ao físico,
Tal ardor pus nos abraços
Que caí morto de tísico
Com o sexo em pedaços!
V
Esperava por isso a magana?
Já previa o que se deu?...
Do além vi-a na cama
Com um tipo pior do que eu!
VI
Vi-o dar ao rabo a valer
Fornicando a preceito...
Sabia daquele mister
Que puxa muito do peito.
VII
Foi a hora de me eu rir
Que a vingança tem seus quês:
«O mais certo é práqui vir,
Inda antes que passe um mês».
VIII
Arranjei-lhe um bom lugar
Na pensão de Mestre Pedro
(Onde todos vão parar
Embora com muito medo...)
IX
Passava duma semana
O meu dito estava escrito
Vítima daquela magana
Pobre tísico, tadito!
DUETO DOS 2 CORNUDOS
X
Agora já somos dois
A espreitar de cá de cima
Calados como dois bois
Vendo o que faz a ladina
XI
Meteu na cama mais gente
Um, dois, três... logo a seguir!
Não há piça que a contente
É tudo que tiver de vir!
S. PEDRO, INDIGNADO, PRAGUEJA.
XII
- É de mais!... Arre, diabo!
- Berra S. Pedro, sandeu.
–E mortos por dar ao rabo
Lá vêm eles pró Céu!
CORO, PIANÍSSIMO, LIRISMO
NAS VOZES
XIII
Que morre como um anjinho
Quem morre por muito amar!
CORO, AGORA NARRATIVO
OU EXPLICATIVO.
Já formemos um ranchinho
De cá de cima, a espreitar.
XIV
Passam meses, passa tempo
E a bela não se consola...
Já semos um regimento
Como esses que vão prá Ingola!
(ÁPARTE DO AUTOR DAS COPLAS:
«COITADINHOS!»)
XV
Fazemos apostas lindas
Sempre que vem cara nova.
Cálculos, medidas infindas
Como ela terá a cova.
XVI
Há quem diga que por si
Já não lhe topou o fundo...
Outros juram que era assi
Do tamanho... deste Mundo!
XVII
- Parecia uma piscina!
–Diz um do lado, espantado.
- Nunca vi uma menina
Num estado tão desgraçado!
APARTE DO AUTOR, ANTIGO MILITANTE DAS ESQUERDAS (BAIXAS).
XVIII
(Um estado tão desgraçado?!...
Pareceu-me ouvir o Povo
Chorando seu triste fado
nas garras do Estado Novo!)
XIX
O último que chegou cá
Morreu que nem um patego:
Afogado, ieramá,
Nos abismos daquele pego.
O CORO DOS CORNUDOS,
ACOMPANHADO POR S. PEDRO EM SURDINA,
ENTOA A MORALIDADE, APÓS TER
LIMPADO AS ÚLTIMAS LAGRIMETAS
E SUSPIRANDO COMO SÓ OS CORNUDOS SABEM.
XX
Mulher não queiras sabida
Nem com vício desusado,
Que podes perder a vida
Na estafa de dar ao rabo.
XXI
Escolhe donzela discreta
Com os três no seu lugar.
Examina-lhe a greta,
Não te vá ela enganar...
XXII
E depois de veres o bicho
E as maneiras que tem
A funcionar a capricho,
Já sabes se te convém.
XXIII
Mulher calma, é estimá-la
Como a santa no altar.
Cabra douda, é rifá-la...
- Que não venhas cá parar.
XXIV
Este conselho te dão,
E não te levam dinheiro...
Os cornudos que aqui estão
Com S. Pedro hospitaleiro.
XXV
Invejosos quase todos
Dos conos que o mundo guarda
FAZEM MAIS UM BOCADO DE LAMENTAÇÃO.
NOTA DO AUTOR: QUASE,
PORQUE ENTRETANTO
ALGUNS BRINCAVAM UNS COM OS OUTROS.
RABOLICES!
Mas se fornicas a rodos
Tua vinda aqui não tarda!
RECOMEÇA A MORALIDADE, ESTILO
ESTÃO VERDES, NÃO PRESTAM.
ALGUNS BÊBADOS, CORNUDOS
DESPEITADOS OU AMARGURADOS.
VOZES PASTOSAS.
DEVE LER-SE: VIIINHO...VÉLHIIINHO...
XXVI
Melhor que a mulher é o vinho
Que faz esquecer a mulher...
Que faz dum amor já velhinho
Ressurgir novo prazer.
FINALE, MUITO CATÓLICO.
XXVII
Assim termina o lamento
Pois recordar é sofrer.
Ama e fode. É bom sustento!
E por nós reza um pater.


Luiz Pacheco
Num dia em que se achou
Mais pachorrento.

Saturday, March 14, 2015

Cantigas da Guerra Civil de Espanha


Cuentan que los inicios de esta tonada popular se remontan a las guerras coloniales del norte de África. La han cantado con diversas letras y títulos, "Viva la XV Brigada", "El ejército del Ebro"… Y en otras ocasiones cambiando a la protagonista: Manuela o Carmela. Hoy os traigo a Manuela.
Patxi Andión nos cantó esta canción popular republicana destacando una cosa en ella: es sólo una canción más, una historia más: en todos los pueblos, en todas las ciudades, en todas las aldeas hubo mujeres así. Para Emilio Prados, por ejemplo, fue Encarnación Jiménez: una lavandera a la que formaron consejo de guerra y fusilaron por atender a unos milicianos heridos. Pero, como dice Patxi, ésta es la canción de Manuela, aunque sea una más:



Manuela

Una historia más de guerra
que se cuenta en las montañas,
que se pierde allá en el tiempo,
¡Ay Manuel, ay Manuela!
pero vive en mi recuerdo
¡Ay Manuela!

Venía de Cataluña
y era hija de peones.
El coraje y la pasión
¡ay Manuela! ¡ay Manuela!
quemaban su corazón
¡ay Manuela! ¡Ay Manuela!

De todas partes venían
y su nombre ya sabían.
Ayudó a muchos hombres
¡ay Manuela! ¡ay Manuela!
que aún recuerdan ese nombre.
¡Ay Manuela! ¡Ay Manuela!
Una noche en las montañas,
dicen que tras su cabaña
desapareció una estrella.
¡ay Manuela! ¡ay Manuela!
nunca más se supo de ella.
¡Ay Manuela! ¡Ay Manuela!
Sólo queda en mi memoria
una canción y una historia:
es la canción de Manuela,
¡ay Manuela! ¡ay Manuela!
una historia más de guerra
¡Ay Manuela! ¡Ay Manuela!



 





LOS CAMPESINOS
El Ejército del Ebro,
rumba la rumba la rumba la.
El Ejército del Ebro,
rumba la rumba la rumba la
una noche el río pasó,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
una noche el río pasó,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
Y a las tropas invasoras,
rumba la rumba la rumba la.
Y a las tropas invasoras,
rumba la rumba la rumba la
buena paliza les dio,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
buena paliza les dio,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
El furor de los traidores,
rumba la rumba la rumba la.
El furor de los traidores,
rumba la rumba la rumba la
lo descarga su aviación,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
lo descarga su aviación,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
Pero nada pueden bombas,
rumba la rumba la rumba la.
Pero nada pueden bombas,
rumba la rumba la rumba la
donde sobra corazón,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
donde sobra corazón,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
Contraataques muy rabiosos,
rumba la rumba la rumba la.
Contraataques muy rabiosos,
rumba la rumba la rumba la
deberemos resistir,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
deberemos resistir,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
Pero igual que combatimos,
rumba la rumba la rumba la.
Pero igual que combatimos,
rumba la rumba la rumba la
prometemos combatir,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!
prometemos combatir,
¡Ay Carmela! ¡Ay Carmela!

Monday, March 09, 2015

La Samarreta




Jo sóc fill de família molt humil.
Tan humil que d'una cortina vella
Una samarreta em feren: vermella.

D'ençà, per aquesta samarreta,
no he pogut caminar ja per la dreta.
He hagut d'anar contracorrent
perquè jo no sé què passa
que tothom que el ve de cara
porta el cap topant a terra.

D'ençà, per aquesta samarreta,
no he pogut sortir al carrer.
Ni treballar al meu ofici: fer de ferrer.

He hagut de, en el camp, guanyar jornals.
Així la gent ja no em veia:
Jo treballava amb la corbella.

I dintre de tots els mals,
sé treballar amb dues coses:
amb el martell i la corbella.

Gairebé no comprenc perquè la gent,
quan em veia pel carrer em cridava: "Progressista!"
Jo crec que tot això era promogut pel seu "despiste".

Potser un altre en les meves circumstàncies,
ja hagues canviat de samarreta.
Però jo, que m'hi trobo molt bé amb ella.
Perquè abriga, me l'estime,
i li pregue que no s'em faça vella.
---
Yo soy hijo de familia muy humilde.
Tan humilde que de una cortina vieja
Me hicieron una camiseta: roja.

Desde entonces, por esta camiseta,
ya no he podido caminar por la derecha.
He tenido que ir contracorriente
porque yo no sé qué pasa
que todo el mundo que la ve venir de cara
lleva la cabeza arrastrando por el suelo.

Desde entonces, por esta camiseta,
no he podido salir a la calle.
Ni trabajar en mi oficio: hacer de herrero.

He tenido que, en el campo, ganar jornales.
Así la gente ya no me veía:
Yo trabajaba con la hoz.

Y dentro de todos los males,
sé trabajar con dos cosas:
con la hoz y el martillo.

Ahora bien, no comprendo porque la gente,
cuando me veía por la calle me gritaba: "¡Progresista!"
Yo creo que todo esto era provocado por su "despiste".

Quizás otro en mis circunstancias,
ya habría cambiado de camiseta.
Pero yo, que me encuentro muy a gusto con ella.
Porque abriga, y la quiero,
y le ruego que nunca se me haga vieja.

Friday, March 06, 2015

94 anos


A 6 de Março de 1921 é fundado o Partido Comunista Português. A organização política de vanguarda dos trabalhadores portugueses surge, ao contrário da maior parte dos partidos comunistas europeus, não como resultado de uma cisão de um partido social-democrata, mas como uma natural emanação das necessidades do proletariado.
Em 1929, o PCP inicia a primeira reorganização com vista a defender-se dos primeiros impactos da clandestinidade. Foi o único partido republicano que não aceitou dissolver-se na ditadura. Todos os restantes capitularam, auto-dissolveram-se ou acabaram enquadrados no regime que resultara do golpe de 1926. O PCP foi proibido 5 anos após a sua fundação, e resistiu. Estava a forjar-se a gesta heróica de dirigentes e militantes que assumiam o compromisso pela libertação dos trabalhadores como a mais importante tarefa das suas vidas.
Em 1940-41 inicia-se a reorganização mais funda. Sucessivos golpes da polícia política e das forças repressivas do fascismo haviam quase destruído a direcção do PCP. Durante alguns meses, o PCP ficara sem membros dirigentes e a situação exigia medidas rápidas de protecção. Mais do que aventura, o operariado precisava de uma organização capaz de derrotar, no concreto e não apenas nas palavras, o fascismo. 6 anos antes, o operariado revoltoso, por todo o país, realiza a greve de 18 de Janeiro com contornos insurreccionais e com heróicos avanços, particularmente na Marinha Grande, onde foi tomado o posto da Guarda. Foi brutalmente reprimido. Mas resistiu porque existia partido.
Durante a década de 40, com particular expressão em 43 e 44, a reorganização do PCP assume "paz, pão e liberdade" como palavras que fundem as aspirações do povo com partido dos trabalhadores. Um partido que está nos corações do povo não pode ser destruído. O fascismo tentou conter, mas a orientação do PCP de aprofundar a ligação às massas e de se tornar um partido nacional permitiu-lhe resistir. O marxismo-leninismo consolida-se, o centralismo democrático assume-se como forma de decisão, o Partido liga-se ao operariado e nele tem a sua fonte inesgotável de quadros. Por cada comunista caído às mãos da violência fascista, outro comunista se levanta.
Durante os últimos anos da década de 50, o partido resiste e corrige um desvio de direita que o afastava das tarefas que se lhe impunham. De 61 a 65 o PCP reorienta a sua estratégia, dirige-se cada vez às massas trabalhadoras, mas também alarga a sua influência e o contacto com outras camadas antimonopolistas, rumo à vitória.
Nove anos depois o 25 de Abril de 1974. E tudo. E os sonhos, e o partido do sonho e as organizações de juventude que sempre o acompanharam, todos saem à luz do dia, à verdadeira luz do dia.
2 anos de conquistas, umas atrás das outras. Escritas nas páginas da lei. Com o partido à frente.
38 anos de reconstituição monopolista, de destruição de direitos e recuperação de privilégios não foram ainda suficientes para destruir o que em dois anos se construiu pelo povo português. Porque o partido, a juventude comunista, os sindicatos de classe resistiram num contexto de ofensiva crescente.
E enquanto resistimos também construímos este projecto colectivo que já foi um sonho e hoje é a luta da nossa vida, o Socialismo e o Comunismo.
Somam-se 94 anos de luta pela liberdade, pela democracia, pelo socialismo e pelo comunismo. 94 anos, "muitas vezes fustigados por duras chuvas e ventos, mas sempre pelo rosto e nunca pelas costas." (A. Cunhal)
Parabéns, comunistas de hoje, portadores desta história que nos molda o presente e o futuro.

Miguel Tiago
(deputado do PCP)

Wednesday, March 04, 2015

Meu Amor Eterno



Meu Amor Eterno

Há poucas coisas de que me arrependo na vida. Mas há erros que se cometem que são de uma grande injustiça.
Em todos os formulários e fichas que tive de preencher ao longo da minha vida, sempre que tinha que indicar a profissão da minha mãe eu escrevia "doméstica". Foi isso que me ensinaram, as mulheres que ficam em casa a tratar dos filhos são domésticas. Mas a minha mãe nunca foi doméstica. A profissão da minha mãe, exercida há 45 anos é ser Mãe. Assim, com letra maiúscula e tudo.
Profissão da mãe: Mãe
A minha mãe assumiu com tal brio o seu papel que passou a ser Mãe acima de tudo. Mais que mulher foi Mãe. Mais que esposa foi Mãe. Muito mais que doméstica ou "dona de casa", ela foi Mãe.
E logo escolheu a profissão mais exigente e desgastante que existe. Trabalha 365 dias por ano, 24 horas por dia. Não tem direito à greve. Não se pode despedir por justa causa, nem por outra causa qualquer. Não existem horários, a disponibilidade tem que ser total.
Não me fica bem dizer isto, mas os resultados do seu labor e da sua arte estão bem à vista. De tal forma foi bem sucedida na sua "carreira" que foi promovida: agora é Avó.
Profissão da mãe: Mãe e Avó
E como Mãe não tem direito a descanso acumula as duas funções, embora com menor carga horária.
Só espero que um dia me possa perdoar a burrice de ter escrito doméstica onde deveria ter aparecido Mãe. E agora, Mãe e Avó.
Mas não uma mãe qualquer. A minha mãe, a única. O ser humano mais humano no ser que conheço. Que toma as dores dos outros como suas, sofrendo às vezes mais que os próprios. Que é incapaz de dizer não a quem lhe bate à porta, mesmo sabendo que pode estar a ser enganada, mesmo quando a pessoa que lhe bate à porta já antes a enganou. A única pessoa que conheço que não entende, nunca entendeu e nunca vai entender o reverso da medalha, a maldade do ser humano. A pessoa que me ensinou o prazer de dar, de fazer o bem aos outros sem esperar nada em troca. A quem eu bebi o exemplo de estar sempre disponível para ajudar o próximo, embora não o consiga aplicar com a dimensão que ela sempre o fez.
Mãe: Meu Amor Eterno!

#70anos #gratidão

Rogério Charraz

Monday, March 02, 2015

**


Ainda sonho!

Sunday, February 22, 2015

*


Mais do que um sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.


E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.


Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor. 


David Mourão-Ferreira

Monday, February 09, 2015

CONVERSA COM A CHUVA



(Poema infanto-juvenil escrito no outono de 1974 durante as
primeiras chuvas, depois de perder a minha mãe em Julho,
e que permanece inédito.)


Gota a gota se faz o teu vestido de água
cobrindo toda a terra: as florestas,
os vales, as montanhas. Gota a gota
te tornas rio e oceano e depois nuvem
e rio e oceano uma vez mais.
E quando és nuvem
rasgas o teu vestido lá no céu
entornando pequenas pérolas de água
que depressa todo o chão bebe e transforma
na seiva que alimenta a jovem macieira
ou o grande castanheiro
e todas as árvores que erguem
os seus ramos para o céu
como se fossem braços
para te abraçar e festejar depois
fazendo desabrochar as flores brancas
vermelhas, lilases, amarelas ou azuis
com que a primavera se veste para
oferecer ao verão frutos muito doces
que são a água de mãos dadas com a terra
no alto de uma árvore.
Às vezes quando dormimos
os teus pequenos dedos tocam na vidraça
e acordam-nos
como se quisessem entrar
e ter uma casa
ou como se andasses a fugir do frio
e estivesses cansada de ser empurrada
pelo vento.
É por isso que quase sempre
tenho vontade de abrir-te a janela
e falar contigo
para que me contes tudo o que viste
no fundo dos rios
ou no alto das nuvens
como desceste as encostas das montanhas
em que sítio das planícies te escondeste
à espera de voar
voar
voar
voar
como um pássaro transparente
ou como se fizesses um truque de magia.
Há quem não goste de ti
mas eu sim: eu amo-te e adoro ver-te
cair sobre as flores que
lavam a cabeleira perfumada
e guardam minúsculas gotinhas como diamantes
para cortejar depois o sol.
Eu gosto de ficar horas a olhar-te
e de ver as pessoas passarem apressadas
com sombrinhas coloridas
ou com enormes e tristes guarda-chuvas pretos
e penso que as que usam sombrinhas alegres
são como eu: acham que a chuva é uma festa.
A festa da alegria das árvores.
E é por isso que
quando chove o céu se enfeita com
uma bandeira de todas as cores que é
o arco-íris.
Mas também os camponeses gostam de ti
e de te ver poisar nos campos
sobre a sementeira ou o pomar
e mesmo os pinheiros muito altos e direitos
com aquele ar de quem não se interessa
se sentem felizes por se cobrirem depois de pinhas
e ficarem muito verdes
com um belo tronco escuro
como se tivessem comprado um fato novo.
E se é verdade que molhas os sapatos das pessoas
e entras pelos buracos das casas pobres
onde vivem pessoas mais pobres do que as casas
tu não és culpada.
Isso não.
Culpadas são aquelas pessoas
que nunca têm tempo para olhar a chuva
as pessoas sisudas e egoístas
que não se importam nada com a vida dos outros
a não ser com a daqueles
tão distraídas como elas.
Tu não tens culpa. Tu gostas
de toda a gente
porque és como as pessoas boas: generosa
transparente e simples. Só que
por vezes bebes muito no mar
bebes
bebes
e engordas as nuvens
que de tão cheias não cabem lá no céu
e andam
desastradamente umas contra as outras
fazendo trovoada
numa enorme discussão de relâmpagos.
Assim mesmo
eu cá em baixo fico fascinado com a tua luz
e admirado como consegues ter essa voz grossa
que se ouve a quilómetros e quilómetros
de distância. Mas nunca tenho medo
porque sei que não estás zangada
e lembro-me que por vezes
dentro do meu corpo há um barulho assim
quando as vísceras andam às voltas porque
também eu comi mais do que devia.
E quando acabas
os rios estão mais cheios e levam
os barcos mais depressa
os peixes saltam a medir forças com a corrente
e transbordam as albufeiras das barragens
com a tua água
que irá produzir energia eléctrica
uma espécie de relâmpago que entra depois
nas nossas casas
sem nenhum barulho
e dura todo o tempo que quisermos.
Porém muita gente que lê ou escreve até tarde
ou vê televisão
e não gosta da chuva
não se lembra que és tu que trabalhas
entre o céu e a terra
para que possamos ter de noite
uma claridade igual à de todos os dias.
É por tudo isto chuva que eu te amo
e quando passa muito tempo sem te ver
sinto-me já cheio de saudades
e fico impaciente
esperando na minha janela
por vezes esperando muito
mas assim que tu chegas é como
quando a alegria chega ao meu coração
ou recebo uma carta de um amigo
ou ainda
como se a minha mãe que já não tenho
voltasse de muito longe
para me beijar.

Joaquim Pessoa

(De CONVERSA COM A CHUVA, a editar brevemente,
integrado na comemoração dos meus 40 Anos de Poesia
publicada em livro (1975-2015).

Tuesday, February 03, 2015

*


Matas-me todas as noites e em todas as manhãs renasço nas memórias que se avivam sempre que te leio escrevo-te um poema que apago e logo refaço em álcool tabaco figuras difusas e tu sempre no meio.
Inevitável lembrar o teu corpo e o teu sorriso rodopiando na sala onde a dança era alegria olhos malandros de um olhar profundo e vivo e a certeza que assim vivíamos todas as noites até ser o dia.

Wednesday, January 28, 2015

A Bandeira Comunista





Foi como se não bastasse
tudo quanto nos fizeram
como se não lhes chegasse
todo o sangue que beberam
como se o ódio fartasse
apenas os que sofreram
como se a luta de classe
não fosse dos que a moveram.

Foi como se as mãos partidas
ou as unhas arrancadas
fossem outras tantas vidas
outra vez incendiadas.
À voz de anticomunista
o patrão surgiu de novo
e com a miséria à vista
tentou dividir o povo.
E falou à multidão
tal como estava previsto
usando sem ter razão
a falsa ideia de Cristo.
Pois quando o povo é cristão
também luta a nosso lado
nós repartimos o pão
não temos o pão guardado.
Por isso quando os burgueses
nos quiserem destruir
encontram os portugueses
que souberam resistir.
E a cada novo assalto
cada escalada fascista
subirá sempre mais alto
a bandeira comunista.

José Carlos Ary dos Santos

Wednesday, January 21, 2015

Vento e Poesia





Quando eu souber da cor do vento
e o vir passar na minha rua
pedir-lhe-ei que entre, com tempo
e cubro-o com a manta que é tua
Quando eu souber do sabor do vento
guardá-lo-ei fechado no coração
para que possas saborear, com tempo
e fazer-lhe um poema, talvez uma canção
Quando eu souber do canto do vento
seja na montanha, no campo ou no mar
escrevê-lo-ei na areia, a tempo
de vir uma onda rebelde e o apagar.
Para que tu possas descobrir, um dia,
que o vento, se quiser, também é poesia.



Sunday, January 18, 2015

Desespero


Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti.

Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.

Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu

A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o esperma que te dou, o desespero.

Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'

Saturday, January 10, 2015

Esta Gente


Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo


Sophia de Mello Breyner Andresen