Sunday, May 05, 2024

1º de Maio de 1982 no Porto

 O sangrento 1º de Maio do Porto e os mortos esquecidos de 1982

O sangrento 1º de  Maio do Porto e os mortos esquecidos de 1982
Durante duas horas, homens fardados e sem freio batem e disparam às cegas. Os jornalistas “comem como os outros”, dirá um deles. Afinal, justifica, estavam ali “para bater e não para chamar ambulâncias”. Nem o serviço de Urgência do Hospital de Santo António é poupado: entram espumando e carregam sobre familiares de feridos.

O dia é 30 de abril de 1982. D. António Ferreira Gomes, bispo resignatário do Porto, recebe a medalha de ouro da cidade. A companhia Seiva Trupe estreia A Dama de Copas. O Coliseu anuncia boxe profissional a 250 escudos o bilhete, para maiores de 14. O Porto amanhece soalheiro, mas tem a noite pendente dos meses de brasa vividos por conta da guerra inflamada por dirigentes sindicais, políticos e editores de jornal: pela primeira vez, com a ajuda do Governo Civil, a UGT conquista à CGTP o direito de comemorar o “Dia do Trabalhador” em plena baixa.

“Risco de confrontos”, alerta-se nas primeiras páginas dos jornais. A “polícia de choque”, dita de Intervenção, avança da capital para o Porto munida de escudos, bastões, G-3, pistolas e gases lacrimogénios. Há comícios marcados de véspera e na Avenida dos Aliados desenham-se trincheiras: os apaniguados de Torres Couto, então secretário-geral da UGT instalam-se em frente ao edifício da Câmara Municipal, protegidos por um cordão policial. A CGTP ocupa a outra fatia da “sala de visitas” da cidade. Um cordão humano de “intersindicais” insulta e protesta contra o aparato policial, junto ao evento da UGT. “A baixa é do povo!”, gritam.

São nove horas da noite. A RTP transmite Plantão de Polícia e anuncia, para depois, o concurso Toma Lá, Dá Cá. O boxe já começou no Coliseu.

O comando distrital da PSP assume as operações e dispersa alguns agitadores à bastonada, sem grandes escaramuças. Às 23 horas, Ramos Rocha, comandante das forças no terreno, adivinha um resto de noite calmo: “Não deve haver mais problemas”, afirma. Magalhães Teixeira, comissário e responsável direto pelos pelotões da “polícia de choque” em diversas artérias de acesso à baixa, tem outros planos. Sem fazer caso da aparente tranquilidade e das ordens superiores para atuar apenas em “caso extremo”, ordena a carga policial. Rua a rua. Sem olhar a quem.

Para descrever o cenário que se seguiu, a Procuradoria-Geral da República não poupou nas palavras: “[Os polícias] agrediram indiscriminadamente todas as pessoas que se encontravam à sua frente, à bastonada e a pontapé, e às vezes com obscenidades, independentemente do sexo e idade; quer arremessassem pedras ou nada fizessem; quer fossem em fuga ou simplesmente estivessem paradas, mormente abrigadas em paragens de autocarros ou nas soleiras dos prédios. Todos eram agredidos, muitas vezes de forma selvática e por mais de um elemento policial contra a mesma pessoa, mesmo que esta se encontrasse prostrada no chão e indefesa”. Fim de citação.

Durante duas horas, homens fardados e sem freio batem e disparam às cegas. Os jornalistas “comem como os outros”, dirá um deles. Afinal, justifica, estavam ali “para bater e não para chamar ambulâncias”. Nem o serviço de Urgência do Hospital de Santo António é poupado: entram espumando e carregam sobre familiares de feridos. Foi necessária a intervenção de médicos e enfermeiros para que a violência parasse. “Pareciam cães”, lembra uma manifestante. Alguns policias dizem-se também agredidos e feridos, mas são apenas tratados a “torsões lombares” causadas pela brutalidade com que usaram os bastões.

Passa da meia-noite quando Pedro Vieira, 24 anos, operário têxtil e dirigente sindical, sai do cinema com a namorada. É apanhado pelos acontecimentos e vê-se obrigado a fugir à sanha policial. Os amigos fazem o mesmo. Ele desata a correr a caminho da ponte D. Luíz I, em direção a Gaia, onde mora. Um polícia dispara e atinge­-o, pelas costas. Alvejado, Pedro corre ainda alguns metros, amparado pelos amigos. Por pouco tempo. Cai minutos depois, inerte, em consequência de lesões no tórax.

Quase duas horas mais tarde, Mário Gonçalves, 17 anos, olha, incrédulo, para as cenas que se desenrolam à sua frente. É vendedor ambulante, não é manifestante, observa apenas, enquanto conversa com os amigos, bem perto da Estação de São Bento. A agitação amedronta-o. Os amigos correm e ele, atrás de um muro, espreita. Um polícia dispara. E corre a confirmar o feito, olhar vazio num rosto de sangue. “Foi uma coisa horrível. O meu filho mais pequeno até se mijou com os nervos, de medo”, conta uma vizinha do morto ao jornalista Manuel António Pina. Mário não estava a fazer nada. Era filho de gente simples, humilde. Anos depois, a família há de contentar-se com uma indemnização, “a primeira vez que o Estado assumiu, de algum modo, a responsabilidade por excessos da polícia”, precisou, em tempos, o advogado José Afonso.

A 1 de Maio de 1982, a morte saiu à rua. Feridos, foram às dezenas. Podia ter sido pior, comentou-se, à época: “Vi um polícia tentar atingir uma pessoa pelas costas. E só não o fez porque a arma encravou no momento do disparo”, recorda Alfredo Mendes, antigo jornalista do DN, repórter na noite sangrenta do Porto. Inquiriu-se, investigou-se, nada. Só as balas extraídas dos cadáveres falam: o calibre é usado apenas por graduados (comissários, chefes de esquadra e sub-chefes) do Corpo de Intervenção.

O País ferve. O Governo da Aliança Democrática (AD), presidido por Pinto Balsemão, “lança a polícia na rua, deixa que agentes enfurecidos persigam gente desarmada”, lê-se no editorial do semanário O Jornal, que reclama o apuramento dos factos até às últimas consequências. Ramalho Eanes, Presidente da República, indigna-se. Pede-se a demissão de Ângelo Correia, Ministro da Administração Interna, então figura de anedotário nacional por causa de uma fantasiosa “revolta dos pregos”, fake news da época. Mas o homem não se demite.

Maio adentro, CGTP e UGT responsabilizam-se mutuamente. Rui Oliveira e Costa, homem próximo de Torres Couto, acusa a Intersindical de utilizar trabalhadores “como carne para canhão”. O Governo lava as mãos.

Sucedem-se as crises no seio da coligação governamental, o País arde em greves, manifestações. As notícias dão conta das dificuldades de Ramalho Eanes, inquilino de Belém, para deitar água nas várias fervuras. Mário Soares é o líder da oposição. Álvaro Cunhal é o secretário-geral do PCP. Mas a esquerda só concorda na divergência. UGT e CGTP radicalizam acusações. A crise económica é real. Noticia-se o saneamento de dirigentes sindicais, o despedimento de mulheres grávidas. Os acontecimentos do Porto, quase poderia dizer-se, são um retrato da época. Carregado nas tintas.

Entretanto, o Papa João Paulo II está para chegar. A CGTP pede uma audiência a Sua Santidade, pois pretende relatar-lhe, de viva voz, as horas sangrentas do Porto. “Agenda carregada”, respondem do Vaticano. O bispo também não recebe. O pároco da Sé, esse, recusa dizer missa em homenagem aos mortos do 1º de Maio.

O funeral das vítimas entope as principais artérias da baixa da cidade. As ruas irrigam-se de protestos. O País veste de luto. Torres Couto comenta: “Foi uma passeata de dois caixões pela cidade”.

(A partir de um artigo publicado na VISÃO, a 24 de Abril de 2002)

Miguel Carvalho

Visão, 30.04.2019 às 17h24

Wednesday, April 24, 2024

“Faltam cinco minutos para as 23 horas”

 

“Faltam cinco minutos para as 23 horas”. João Paulo Diniz fala sobre a senha que mudou o país, a democracia e o jornalismo


Em conversa com o SAPO, João Paulo Diniz recorda o momento em que lançou a senha e a música “E Depois do Adeus”. Depois, o país já não foi o mesmo e a revolução acabou por transformar a década de 70. O locutor lembra-se do gozo que sentiu ao ler as primeiras notícias sem censura e elogia a rapidez com que hoje se trabalha. Ao mesmo tempo, não poupa críticas à falta de experiência nas redações e confessa-se muito desiludido com a abstenção. Afinal, afirma, a democracia somos todos nós.

João Paulo Diniz explica logo no início da nossa conversa: “A senha não era a música, era a frase: ‘faltam cinco minutos para as 23 horas’” e conta que quando foi à discoteca da rádio buscar o disco do Paulo de Carvalho, trouxe também o de Beatles e mais outra meia dúzia de discos que marcavam a década de 70. “Para não dar nas vistas”, conta.

Quando o Major Costa Martins foi ter com ele à Rádio no dia 22 de abril de 1974 desconfiou que pudesse ser um esquema da PIDE. Só mais tarde, com Otelo Saraiva de Carvalho, que já conhecia desde os tempos da Guiné, percebeu que o movimento era sério. Otelo pedia confiança e que o ajudasse a enviar um sinal para todo o país. Assim, foi, e a cinco minutos das 23 horas, João Paulo Diniz lançava a primeira senha. Aos 25 minutos do dia 25, a Rádio Renascença confirmava a revolução com a segunda senha: a Grândola Vila Morena.

Para João Paulo Diniz não houve dúvidas. Se corresse mal “era um azar terrível, uma chatice em todos os aspetos”, mas o radialista confiava no movimento, tinha um desejo profundo que acabasse a guerra em África e que pudesse viver num país sem ditadura e com eleições livres. Fez a tropa com 21 anos e poucos meses depois foi mandado para a Guiné. Esteve dois anos em Bissau na rádio das Forças Armadas: “Tive sorte, mas vi coisas que preferia não ter visto”, afirma.

"Eu tinha de confiar que ia correr bem e ter fé"

Confidencia que, quando aceitou a missão de lançar a senha, contou à mãe o que ia fazer e que, naturalmente, ela demonstrou muita preocupação e pediu cuidado – o pai de João Paulo Diniz já tinha estado preso dois anos em Cabo Verde. João tentou descansar a preocupação da mãe e explica: “A fazer uma coisa destas eu tinha de confiar que ia correr bem e ter fé.”

A escolha da música também não foi consensual e se para muitos de nós a voz de Zeca é inconfundível, antes de 1974 não era bem assim. “Estava proibidíssimo pela censura, logo não tocava nas rádios e podia haver confusão entre os militares porque podiam não identificar a voz”. O radialista explica ainda que havia pessoas que conheciam o cantor e tinham os discos em casa, mas que preferia uma mensagem mais clara, uma música que todos conhecessem: a música que representou Portugal na Eurovisão: E Depois do Adeus, com a música de José Calvário, letra de José Niza e interpretação de Paulo de Carvalho.

O Festival da Eurovisão desse ano realizou-se no dia 6 de abril em Brighton, no Reino Unido, e a música que é hoje um dos marcos da Revolução ficou em último lugar.

No ano anteriorno Festival da Canção no Luxemburgo, Fernando Tordo driblava a censura no tema Tourada, com os versos de Ary dos Santos: “Com bandarilhas de esperança / Afugentamos a fera / Estamos na praça da primavera / Nós vamos pegar o mundo /Pelos cornos da desgraça / E fazermos da tristeza graça”

João Paulo Diniz estava no Luxemburgo para cobrir o evento e deslocações como esta faziam-no questionar e desejar por uma vida democrática também em Portugal.

Cresceu em tempo de ditadura e viveu com censura até aos seus 25 anos. Diz que é “uma coisa sinistra, uma dominação do pensamento das pessoas, uma desconsideração do ser humano”.

"No dia seguinte, apresentei-me ao trabalho. Foi um dia muito especial"

No dia em que lançou a música de Paulo de Carvalho continuou a trabalhar até às 2h e foi para casa dormir. Mas acordaram-no poucas horas depois com a informação de que o Rádio Clube Português estava a transmitir marchas militares. “Já sabia o que estava a acontecer e fiquei acordadíssimo”, conta. E depois? “Depois apresentei-me ao trabalho, estava de serviço e fui trabalhar. A programação estava toda alterada, foi um dia muito especial.”

Depois desse dia, para o locutor foi como se tivesse mudado de país, “não a nível geográfico, mas houve uma alteração profunda da sociedade”, conta. “Deixamos de viver sempre a falar baixinho e a desconfiar que o outro poderia ser da PIDE.”

Na redação, e mesmo passados alguns meses sobre a revolução, pensava muitas vezes ao ler as notícias: “Isto há uns meses era impensável. Não é que fosse nada de transcendente, mas agora podíamos dizer à vontade. Deu-me um gozo espantoso”, relembra.

Meio século de diferenças entre troca de pesetas e o imediatismo da informação

Comemorou 50 anos de carreira em 2015. Este ano, em março, a Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu-lhe o Prémio Igrejas Caeiro. O interesse pela rádio começou bem cedo e aos 13 já tentava fazer audições, aos 16 começou a trabalhar na Rádio Peninsular. Depois trabalhou no Rádio Clube e foi para Londres, onde esteve seis anos na BBC: “Foi das melhores experiências da minha vida”, recorda. Trabalhou cerca de 30 anos na Antena 1, passou pela RTP, SIC e TVI e dirigiu a Rádio Alfa, em Paris.

Ao longo destes anos, entrevistou nomes que ficam para sempre na história, como Salvador Dali, Fidel Castro e por cá Ruy de Carvalho ou Eunice Muñoz. Destaca o encontro com Nelson Mandela: “Vê-lo é um momento daqueles em que uma pessoa quase que se belisca. Ele era espantoso, um homem inteligentíssimo, eu estava ali com muito respeito por ele”, conta.

Meio século depois, trabalhar em televisão e rádio é completamente diferente. “Tudo se transformou. Há uma agressividade muito grande, mas no bom sentido: quando acontece algo, em instantes está lá um repórter”, aprecia e recorda o tempo em que  foi cobrir o assalto ao Banco Central de Espanha, em Barcelona. Em maio de 1981, sob a direção de Adelino Gomes, João Paulo Diniz foi enviado para a Catalunha: “Tínhamos de ir à agência de viagens para marcar a viagem e tive de ir por Madrid para o nosso correspondente me ir levar pesetas.”

Elogia a rapidez com que hoje se chega ao local e a facilidade com a que a informação é transmitida mas deixa também críticas a um culto da imagem em detrimento da credibilidade.

“Acho que é ótimo haver cursos de comunicação social e haver estágios nas rádios, jornais e televisões, pois isto dá uma pequena tarimba aos jovens”, conta. O primeiro curso de jornalismo em Portugal surgiu apenas em 1979, na Universidade Nova de Lisboa, e a profissão aprendia-se e afinava-se nas redações com os mais velhos. “Hoje, tenho a sensação de que atiram a gente nova aos crocodilos, percebe-se que ainda não estão em condições para enfrentar uma câmara de televisão e mostrar credibilidade, acho isso uma péssima ideia. É preciso começar devagarinho para depois se poder levantar voo".

Comparando a informação em Portugal com a de outros meios anglo-saxónicos, afirma que tem pena de por cá não se ver locutores “de cabelos brancos” e que “há muitas carinhas larocas”. “A televisão não é uma passagem de modelos, é essencial transmitir credibilidade”, afirma.

“A democracia é uma coisa muito séria”

Quando questionado sobre as expectativas que se tinham naquela época para a democracia e como avalia o seu estado na atualidade, João Paulo Diniz é perentório: “A democracia é uma coisa muito séria. Pela democracia, houve milhares de portugueses que foram presos, que foram torturados, que foram mortos. É uma coisa muito séria.”

O locutor, hoje com 73 anos, desenvolve: “Acho que a democracia se traduz numa expressão que ouço há muito tempo: a máxima liberdade. Concordo muito, mas é importante referir que isto traz a máxima responsabilidade. E eu acho eu a democracia é isso: a máxima liberdade com a máxima responsabilidade.”

Um dos homens que deu início a um dos dias mais importantes da história do país, afirma que fica muito desiludido com os níveis de abstenção a que se vão assistindo nas várias eleições. “A democracia somos nós que a construímos e quando há eleições e as pessoas ficam a dormir ou vão dar uma volta e não votam, acho que depois não deviam fazer críticas”, ao mesmo tempo, delega responsabilidade sobre o descontentamento com a classe política aos governos e que têm obrigação de se perguntar o que estão a fazer de errado para as pessoas não se interessarem pela participação democrática.

João Paulo Diniz acrescenta ainda: “Há atitudes de certos deputados na Assembleia da República que me chateiam solenemente, há comportamentos que são anedóticos, fazem show-off, gracejam, mandam bitaites e, para mim, isto é brincar com coisas muito sérias.” “Acho a negação do espírito democrático, os senhores deputados têm uma missão fantástica, mas o país espera mais”, sentencia.

Entrevista originalmente publicada a 25 de Abril de 2022.

Tuesday, April 23, 2024

CELESTE CAEIRO



"O soldado pediu-me um cigarro. Eu não fumava, nunca fumei. Por segundos, fiquei a pensar como poderia compensar aquele rapaz, ali, em cima daquele carro, a lutar por nós. Estava ali a dar-me uma coisa boa e eu sem nada para lhe dar. Sem pensar, tirei um cravo do ramo que levava e ofereci-lho.
Nunca me passou pela cabeça que por causa disso o 25 de Abril viesse a ser conhecido mundialmente como a Revolução dos Cravos.
Nunca se conseguiu encontrar aquele rapaz. Sempre que penso naquele dia choro. Tinha 40 anos, cuidava da minha mãe e da minha filha. Morava no Chiado e adorava a cidade onde nasci. E ainda adoro.
Tenho 90 anos, ouço e vejo muito mal. Comovo-me muito a falar deste dia. Os médicos dizem que me faz mal. Vou pedir à minha neta que lhe conte o resto da história. Viva o 25 de Abril! Se o deixarmos morrer teremos de fazer outro."

CAROLINA
Carolina 23 anos. É mestre em Direito. Quer ser magistrada. Vive em Alcobaça.
"Havia sempre nos livros da escola a referência à Revolução dos Cravos. A cada ano, mal recebia os manuais, ia de imediato à procura dessas páginas. Sabia que as professoras, nem que fosse uma vez por ano, haveriam de falar no assunto e que eu, mais uma vez, ficaria em silêncio. Nunca disse na escola que foi a minha avó que deu o nome à revolução. Apesar de todo o orgulho que tenho. Acredito mesmo que aquele gesto foi obra do destino.
A minha avó Celeste é filha de uma espanhola de Badajoz e de pai desconhecido. Com dois irmãos, mais velhos, cresceu na Casa Pia. À minha bisavó custou-lhe até muito deixar ali os filhos, que visitava regularmente. Nunca os abandonou.
A minha avó era a menina favorita da diretora do colégio. Fez o Curso de Enfermagem, mas como tinha problemas pulmonares não pode exercer. Porém, a menina Celeste foi sempre independente. Nunca se casou com o meu avô. Quando o meu avô se portou mal, tinha a minha mãe 3 anos, separaram-se. Para consolar a minha avó, quis oferecer-lhe um fio de ouro e mais coisas. Mas a minha avó não quis saber dos presentes, nem dele. Sozinha, continuou a cuidar da filha e da mãe.
Em abril de 1974, trabalhava num restaurante. O restaurante fazia um ano no dia 25 de abril. Os cravos eram para dar aos clientes. Com o restaurante fechado, as empregadas ficaram com as flores.
Dá-se então o feliz episódio, no início da Rua do Carmo. Um fotógrafo (Carlos Gil) assistiu à cena. Publicou a fotografia. No dia seguinte a minha avó foi trabalhar. Já os colegas tinham ligado para a Crónica Feminina, que logo a foi entrevistar.
Este ano, esse episódio será reconstituído. A minha avó gostava muito que uma placa assinalasse o local. Algo a dizer que foi ali que nasceu o nome Revolução dos Cravos. Ou até ter ali uma pequena estátua.
Falar do 25 de Abril emociona-a muito. Nestes períodos, fica melancólica. Acreditamos que o AVC que sofreu pouco depois das comemorações dos 25 anos de Abril terá tido a ver com as emoções que sentiu. No entanto, tem sido muito ignorada por todos.
Não há fotografias da minha avó com 40 anos. No incêndio do Chiado, perdeu a casa e todos os pertences. As fotografias arderam. Foram-se todas as recordações. Vive há anos num prédio a cair aos bocados, perto da Avenida da Liberdade. Podia viver com a filha e a neta em Alcobaça. Mas à minha avó, alfacinha de gema, ninguém a consegue tirar de Lisboa.
A minha avó, que continua a prestar muita atenção às notícias, está muito preocupada com o país. Na noite das últimas eleições, ao contrário do que é hábito, foi deitar-se cedo. “Não estou para ver esta miséria.” A mim ensinou-me desde miúda que o valor mais importante é o da liberdade."
Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles, Diário de Notícias, 23/04/2024

Wednesday, April 17, 2024

100 ANOS QUE PASSARAM, 100 ANOS QUE HÃO-DE VIR


1 O PRIMEIRO DIA 

- Boa noite, mulher! João, dá um beijo ao pai. 

- Chegaste tão tarde, homem. Deves vir com fome. Fiz aquela sopa de couve com batatas de que tanto gostas. Tem um pingo de azeite e duas rodelinhas de linguiça, era o que havia. 

- São para o miúdo. 

- Hoje é Domingo, pai. Não foste à fábrica…(1) 

- Fui a Lisboa, à Rua da Madalena… Gente como eu, de famílias como nós… 

- Desembucha, homem! Até o moço parou de comer. 

- Então vou contar-te do que é feita essa sopa que tens no prato.

- Sim, pai, conta-me tudo. 

- Os operários, como eu, lidam com ferramentas. Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções, entendes? Têm todas o mesmo dono, aquele a quem chamamos patrão. Mas também lidamos com grilhetas, correntes de amarrar, e puas de colar ao chão. São as ferramentas da exploração e também têm o mesmo dono. 

Se não nos libertarmos das segundas seremos eternamente escravos das primeiras. 

É por isso que o pai sai de noite para a fábrica e só chega a casa de noite. É por isso que achamos boa esta sopa quente de couve com batatas. É por isso que hoje fui a Lisboa, à Rua da Madalena. 

Gente como eu, de famílias como nós… 

Tudo o que acabaste de ouvir está dentro desse prato de sopa que tens à frente. 

- Serve-te, homem, mais uma concha, precisas de te alimentar! 

- Serve-te a ti e serve também o menino.   


 2 UM PUNHADO DE TRIGO 

- Bom dia, mãe! 

- Bom dia, João! 

Depois de comeres quero que vás à despensa e olhes bem para a saca de trigo que o teu pai trouxe. 

- É tão grande, minha mãe, como pode o pai com ela?    

- Com a vida, meu amor: É o peso da vida! 

- E agora, o que queres que faça, mãe? 

- Quero que a abras e apanhes um punhado de trigo, com a mão bem fechada, e voltes para a mesa. 

Quantas bagas de trigo encontraste na saca? 

- Não sei, mãe, devem ser milhões… 

- Cada baga é uma pessoa que deu tudo por nós. Que enfiaram no degredo, que maltrataram, que torturaram, e que, até mataram. São pessoas do Mundo inteiro. 

- E este punhado, mãe, que trago junto a ti? 

- Essas são as nossas, as da nossa terra. Cada baga tem um nome, um rosto, uma identidade. A todas elas roubaram anos de vida e, por vezes, a vida inteira. Afinal tudo o que queriam era o bailado primordial das searas ao vento. Foi para isso que nascemos: somos filhos da mesma terra e um dia seremos iguais no bailado e na bonança. 

- É por isso que tu dizes que o futuro há-de ser melhor? 

- Sim, meu filho, é por isso que digo. E ele também está nas tuas mãos e no punhado de trigo que trouxeste. 

- Que farei com ele, minha mãe? 

- Espalha as bagas no alegrete do quintal, aquele que o pai pintou de vermelho, deita-lhe uma pouca de água e a Natureza fará o seu curso. 

- Como nós, mãe? 

- Como nós, amor!  


3 MORTALHAS E LÁPIS DE COR 

- Bom dia, mãe! 

- Bom dia, filho! 

- A mãe hoje vai sair. Vou visitar o pai. Levo-lhe mortalhas, um lápis e os resultados da bola. 

- Mortalhas, mãe? O pai não fuma… 

- Por isso lhe levo um lápis. 

- A que horas voltas, mãe? 

- Não sei! O pai um dia disse-me que o inferno tem os relógios parados. 

- Espero-te à porta, então, a noite inteira se for preciso. 

- É uma noite muito longa, meu amor. Faz muito frio e os lobos rondam a casa.  Se quando chegares eu não estiver, vai para casa da tia Amélia. Ela sabe de tudo e tem tudo o que tu precisas: pão com manteiga, uma canjinha para o jantar, uma sebenta e lápis de cor. 

- Queres que te faça um desenho mãe? 

- Quero muito, João! Quero muito! 

- Vou desenhar o nosso alegrete vermelho com o trigo a despontar. Ao pezinho mais bonito, aquele que se inclina para mim, darei o nome do pai. 


4 LIVRO EM BRANCO 

- Pai! 

- Diz, filho. 

- Que livro é aquele que tens na mesinha de cabeceira? 

- Foi feito por mim, nas pequenas horas vagas. Quem me ensinou foi um velho mestre encadernador. Cosidinho à mão, fio norte, requife… tudo o que um bom livro merece. 

- Mas não tem nada escrito, pai. Para que serve um livro em branco? 

- Para colocarmos um sonho em cada folha. 

- Mas como? Explica-me tudo, pai. 

- Uma canção bonita, um quadro, um poema, até um bailado podemos ver nesse livro. Está lá tudo o que quisermos e só nós conseguimos ver e ouvir. 

Tudo o que nós amamos e eles odeiam cabe nesse Livro dos Sonhos. 

- Mas isso não é perigoso, meu pai? 

- É! Se um dia eles cá voltarem para me levarem de novo, certamente roubarão o livro. Nunca entenderão aquelas folhas em branco, nunca conseguirão ler a esperança de cada folha. Essa será a nossa vitória desse dia. 

- E se assim for, pai, o que faremos? 

- Faremos um livro novo. 

Chegará o dia em que, com uma caneta de tinta permanente, passaremos a limpo tudo o que nos vai na alma e abriremos o nosso livro para que todos o possam ver. Com ele faremos uma grande Festa. Todos os anos faremos uma grande Festa. Todos os sonhos escondidos terão a luz do dia, tudo o que o futuro nos destina terá uma candeia. 

- É por isso que tu e a mãe dizem que futuro espera por nós? 

- É, filho. É por isso mesmo! 

- Pai, posso abrir o livro e imaginar um conto bonito com crianças, flores e animais? 

- Podes, João! Esse livro será a tua maior herança.   


5 CASA SEM MORADA 

- O que estás a fazer, pai? 

- Uma mala com um avio de roupa para ti. Pijama, roupa de sair, e um agasalho de lã feito pela tua mãe… Acho que está tudo. 

- Mas para quê, pai? Onde me levas? 

- Vais passar uns tempos a casa da tia Amélia. Ela já tem um divã de abrir e fechar no canto da sala. 

- E tu, pai? E a mãe? 

- Nós vamos passar uns tempos numa casa sem morada. 

- Mas onde, pai? Como saberei de vós? 

- Vais levar contigo o nosso Livro dos Sonhos, aquele que tem as folhas em branco e só nós conseguimos ler. Quando a saudade te apertar, abre o livro. Poderás ver os pais nos locais que o teu coração te indicar. É um segredo só nosso! 

- Mas quando poderei voltar a tê-los? 

- O inferno tem os relógios parados… 

- E vocês, queridos pais, o que vão fazer longe de mim? 

- Fazer andar os ponteiros, meu filho. Fazer andar os ponteiros.    


6 O DIA MAIS BONITO 

- Tia Amélia!? 

- Diz João… 

- O relógio da sala está quase a dar as 11 da noite, estás a ouvir rádio… 

- São insónias e pressentimentos… tenta dormir, meu amor. 

Quis saber quem sou 
O que faço aqui 
Quem me abandonou 
De quem me esquec

- É tão bonita essa canção, tia. 

- Pois é, João! Vou baixar o som, por causa dos vizinhos, vê se dormes, a tia não consegue. 

Grândola, vila morena 
Terra da fraternidade 
O povo é quem mais ordena 
Dentro de ti, ó cidade! 

- Tia, essa canção fala de coisas perigosas, daquelas coisas que só nós vemos no livro que o meu pai fez… 

- Sim, meu amor. É verdade! Esta é a noite de todas as insónias e pressentimentos. - Tia, também tenho insónias e são 4 de madrugada… Não desligues o rádio. 

Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas… 

- Tia, os ponteiros do relógio da sala não param. Será que o relógio do inferno também começou a trabalhar? 

- Acho que sim, João! Isso só quer dizer que ele tem os dias contados. 

- E os meus pais, tia? Tenho tantas saudades… 

- Quando o Sol subir vou à procura deles. Acho que sei onde os encontrar. 

- Onde, Tia? Onde estarão? 

- No Largo de Carmo. É mais um pressentimento… 

- Vais deixar-me sozinho? Tenho medo! 

- Hoje não, João! Hoje é o primeiro dia sem medo. Faz um desenho bonito na tua sebenta para quando os teus pais chegarem. Eles vão ficar tão felizes… 

- Está bem, tia Amélia! Vou desenhar um menino como eu a pôr uma flor no cano de uma espingarda.    


7 O LIVRO DA LEI 

- Bom dia, mãe! Que livro é esse que trazes? É o nosso Livro dos Sonhos? 

- Não, querido! É o Livro da Lei. Foi o Dia Mais bonito que permitiu fazê-lo. 

- E nesse Livro da Lei está lá algum sonho nosso? 

- Sim! Estão lá muitas coisas que sonhámos e a promessa de sonhos vindouros. Está lá uma casa para todos, uma escola bonita para ti e para os outros meninos, estão lá doutores e enfermeiros para quando estivermos doentes, estão lá os livros que eram proibidos e que agora deixaram de ser, a música, o teatro… Tudo o que estava no Livro dos Sonhos agora está a tinta permanente no Livro da Lei. 

- E eles vão deixar? Vão respeitar esse Livro? 

- Vão fazer o que puderem para o evitar. Lembras-te quando os pais foram morar para uma Casa sem Morada? 

- Sim, minha mãe! Fiquei na casa da tia Amélia… 

- Essas casas agora têm todas morada e, para que não haja dúvidas, têm todas a nossa bandeira à entrada. 

Vão ser maus como sempre foram, vão tentar destruí-las, vão mentir com todos os dentes sobre as nossas intenções, vão tentar enganar o Povo com todas as mentiras que aprenderam no inferno. 

- E nós, o que faremos, mãe? 

- O que sempre fizemos. Lembras-te das ferramentas que o pai usa? Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções… 

- Lembro muito bem, mãe. 

- Continuaremos ao lado de quem as usa. De quem usa as ferramentas da terra; de quem usa as ferramentas do pensamento; de quem usa o coração a bater por um Mundo melhor. 

- Só que agora esse sonho já tem morada certa… 

- Sim, meu amor! Esse sonho habita em casas com a nossa bandeira à porta. São as casas mais Livres do Mundo.    


8 O FUTURO TEM PARTIDO

- Pai!?

- Diz, João!

- Lem­bras-te quando foste a Lisboa, à Rua da Ma­da­lena?

- Lembro-me muito bem! Foi há 100 anos, mas lembro-me como se ti­vesse sido ontem.

- Quando che­gaste a casa fa­laste-me de gri­lhetas, cor­rentes de amarrar, e puas de colar ao chão.

Ex­pli­caste-me isso en­quanto jan­tá­vamos uma sopa de couve com ba­tatas…

- É ver­dade, meu filho! Foi a luta e a me­mória que nos trou­xeram aqui.

- E agora, pai? Conta-me tudo…

- Agora, ainda não nos li­vrámos delas… mas po­demos cerrar os pu­nhos à porta da fá­brica e erguê-los em todas as praças.

Somos todos iguais na hora do nas­ci­mento. Um mi­nuto de­pois pa­rece que temos o des­tino tra­çado. Uns, como o pai, têm de tra­ba­lhar muito para essa sopa que tens à frente. Ou­tros têm quem lhes ponha a mesa com co­midas e vi­nhos finos. Já não são nossos donos, mas ainda são donos de grande parte do nosso tra­balho.

- Achas que um dia dei­xará de ser assim?

- Tenho a cer­teza, meu filho! Tenho a cer­teza!

- Mas quando, pai? Quando?

- Não sei, João! Apenas sei que hoje é o pri­meiro dia dos pró­ximos 100 anos.

- Pai, vou fazer um de­senho desse dia!

- Faz! Quando es­tiver ter­mi­nado leva-o para a nossa casa, aquela que tem a ban­deira à en­trada, e pen­dura-o na pa­rede por cima da es­tante. Assim, quando algum de nós es­tiver de­sa­ni­mado po­derá olhar para o teu de­senho e sorrir com a cer­teza que o Fu­turo tem Par­tido.

João Monge

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(1)  N.A. 6 de Março de 1921 foi um Domingo.  

#50Anosdo25deAbril

Saturday, April 13, 2024

Romance de uma árvore à beira do caminho

Perto de Espinho havia uma árvore
havia uma árvore à beira do caminho.
E havia um buraco naquela árvore
perto de Espinho.

(E o povo sabia que havia um buraco
naquela árvore à beira do caminho.)

Mas quando vieram os embuçados
à procura de um médico em terras de Espinho
ninguém disse nada sobre o homem escondido
naquela árvore à beira do caminho.

Esta é uma história que todos sabem
em terras de Espinho.
Esta é a história de uma árvore
à beira do caminho.

Era noite cerrada noite negra
era noite de morte no caminho.
E de repente chegaram os embuçados:
procuravam um médico em terras de Espinho.

Era noite sem lua noite de emboscada
noite de um homem não andar sozinho.
As bocas fecharam-se ninguém contou nada.
Era noite de embuçados no caminho.

Disseram ao povo que havia um ferido.
Mostraram as mãos: seria sangue? Seria vinho?
E ninguém foi chamar o médico escondido
naquela árvore à beira do caminho.

Era noite sem lua noite de sangue
era noite de esperas no caminho
embuçados chegaram. Embuçados partiram.
Procuravam um médico em terras de Espinho.

Já corre um mensageiro para aquela árvore
à beira do caminho.

Há embuçados. Falaram dum ferido.
Mas o sangue que vimos era vinho.

Já o médico sai do seu buraco
naquela árvore à beira do caminho.
(ai a noite sem lua
ai o sangue que tem a cor do vinho.)

Catorze balas o esperavam
catorze balas o mataram nessa noite em Espinho.
E nunca mais o médico se escondeu
naquela árvore à beira do caminho.

Mas todos os anos na mesma noite
em que o sangue correra nessa aldeia de Espinho
mãos invisíveis vinham florir
aquela árvore à beira do caminho.

De novo vieram os embuçados
de novo mataram em terras de Espinho.
Quando se foram já não havia
aquela árvore à beira do caminho.

Mas no dia seguinte no mesmo sítio
onde o médico se escondia perto de Espinho
as mãos dos pobres vinham plantar
outra árvore à beira do caminho.

Manuel Alegre